quarta-feira, maio 19, 2004

Vitória da esquerda na Índia

Para os muitos de nós que se sentem à margem da política institucional, os momentos de festa são poucos, efémeros. Hoje é um desses dias. Quando a Índia foi às urnas, vivíamos sob pressão simultânea do neoliberalismo e o neofascismo -- um assalto às comunidades pobres e minoritárias.

Nenhum analista político previu os resultados. A coligação de direita liderada pelo BJP não foi apenas expulsa do poder pelo voto -- foi humilhada. Não é o voto decisivo contra o fundamentalismo religioso e as “reformas” económicas neoliberais. O Partido do Congresso foi o mais votado. Os partidos à esquerda, os únicos abertamente (mas pouco eficazmente) críticos às reformas, receberam apoio sem precedentes. Mas mesmo enquanto celebramos, sabemos que em todas as questões essenciais, exceto no chauvinismo hindu aberto (bombas nucleares, grandes barragens, privatizações), não há grandes diferenças ideológicas entre o Partido do Congresso e o BJP. Sabemos que a herança do Partido do Congresso nos levou ao horror do BJP. Ainda assim, celebramos, pois é certo que acabou a escuridão. Ou não?

Recentemente, um jovem amigo falava comigo sobre a Caxemira. Sobre o domínio da desonestidade política, a brutalidade das forças de segurança, os limites de uma sociedade saturada de violência, na qual militantes, polícia, agentes de inteligência, funcionários públicos, homens de negócio e mesmo jornalistas se encontram e, gradualmente, com o passar do tempo, se transformam uns nos outros. Sobre a obrigatoriedade de se viver com as matanças sem fim, os “desaparecimentos” crescentes, os sussurros, o medo, os rumores, a falta de conexão insana entre o que o povo da Caxemira sabe estar acontecendo e o que é dito a nós. Ele disse: “A Caxemira costumava ser um negócio. Agora, é um hospício.”

Histeria, mentiras e massacres

Os conflitos na Caxemira e nos estados do nordeste indiano fazem destas regiões alas especiais, as mais perigosas do manicômio. Mas, no centro do país, a desconexão entre o conhecimento real e a informação, entre fato e conjectura, entre o mundo “real” e o mundo “virtual”, também cria espaços de especulação sem fim, e possível insanidade.

Cada vez que acontecia um dos chamados ataques terroristas, o governo do BJP intervinha, ansioso por apontar culpados após pouca, ou nenhuma, investigação. O ataque ao prédio do Parlamento, em 13 de dezembro de 2001, e o incêndio, no ano seguinte, do Sabarmati Express, em Godhra, são bons exemplos. Em ambos os casos, as evidências encontradas levantaram questões perturbadoras, que foram varridas para debaixo do tapete. Todos acreditavam no que queriam, mas os incidentes foram utilizados para estimular a intolerância, numa névoa de intensa xenofobia hindu.

Muitos governos -- tanto o central quanto os estaduais; tanto do Partido do Congresso quando do BJP e dos partidos regionais – serviram-se desse clima de histeria fabricada para lançar um assalto contra os direitos humanos tão intenso que envergonharia até os regimes ditatoriais mais conhecidos.

Arundhati Roy,Outras Palavras.

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