António Martins
Que estranha força terá transformado os velhos direitos sociais num sonho cada vez mais inatingível?
Há duas explicações, verdadeiras e complementares entre si. A primeira é o enorme terreno conquistado, nas duas últimas décadas do século passado, pelo pensamento capitalista – que vê na busca do lucro o único motor eficiente para a produção de riquezas. Quando o ritmo de crescimento das economias e a saúde financeira dos Estados entraram em declínio, pouco antes de 1980, apontou-se como culpados os direitos sociais conquistados no pós-II Guerra. Os sistemas de Previdência foram transformados nos vilões principais. Eram vistos como insustentáveis, a partir de estudos de demografia supostamente neutros. Se as populações envelheciam – porque a expectativa de vida aumentava e as taxas de natalidade caíam – então, em pouco tempo, os trabalhadores no activo seriam incapazes de suportar o peso dos aposentados.
Este raciocínio, repetido exaustivamente pelo jornalismo de mercado, conquistou corações e mentes e abriu caminho para o corte dos direitos duramente adquiridos. Há vinte anos as chamadas “reformas” (na verdade, contra-reformas) da Previdência entraram na agenda política de quase todos os países. A receita é sempre a mesma: aumentam-se as contribuições, eleva-se a idade mínima para deixar o trabalho, reduzem-se os benefícios, estimula-se os assalariados mais bem pagos a migrar para planos privados. O objectivo declarado – dar estabilidade ao sistema – nunca é alcançado. Mas em vez de procurar outro caminho, o “pensamento único” pede mais do mesmo. “Muitos governos começaram a fazer reformas”, reconhece o "The Economist" esta semana. Porém, emenda: “Há muito mais para ser feito”...
Surge outra explicação
Embora estas ideias ainda sejam predominantes, surgiu e ganhou corpo, a partir dos anos 90, uma explicação alternativa. Ela procura examinar o problema a partir da lógica dos direitos. Um dos pioneiros é o francês René Passet, integrante do Conselho Científico do ATTAC. Passet convida a visualisar outras realidades, além da mudança demográfica. A principal delas é o aumento radical da produtividade do trabalho, graças à incorporação de novos saberes.
Este economista incomum reconhece, num artigo para o jornal Le Monde Diplomatique: “a população [francesa] ocupada em 1995 (22 milhões) representava cerca de 2,9 contribuintes por aposentado (7,7 milhões de beneficiários). E estima-se que esta relação diminuiria para 1,7 em 2040”. Em seguida, ele contra-ataca: mas “se a produtividade por hora de trabalho de cada assalariado continuar a crescer ao ritmo médio verificado no período 1992-94 (2% ao ano), ela será multiplicado por 2,4. Por outras palavras, em 2040 a produção de 1,7 assalariado será igual à de 4 assalariados de 1995. Poderão, portanto, financiar mais aposentados que hoje”.
Ou seja: se resistirmos à tentação de tratar os idosos como bodes expiatórios, será possível encontrar causas mais profundas para a crise dos sistemas de Previdência. Todas elas têm a ver com os diversos privilégios que o capital arrancou das sociedades, nas últimas décadas. No Brasil, por exemplo, uma fatia cada vez maior da receita do Estado é desviada para o pagamento de juros aos muito ricos. Nos países “desenvolvidos”, a Segurança Social entra em crise porque as empresas transferem parte da produção para regiões onde os salários são mais baixos e os trabalhadores menos organizados, ou mais reprimidos. Nestas nações, os governos acostumaram-se a “atrair” as multinacionais, ferecendo-lhes enormes vantagens – entre elas a isenção de impostos.
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