António Martins
Raras vezes as urnas falaram tão claramente, e foram tão pouco ouvidas. No último domingo (28), um furacão eleitoral desabou sobre o governo de direita do presidente francês Jacques Chirac e de seu primeiro-ministro, Jean Pierre Raffarin, empossados há menos de dois anos. Disputava-se o governo e os concelhos das 22 Regiões administrativas do país. Mas avaliava-se sobretudo a política de redução de direitos sociais e previdenciários, e da destruição sistemática dos serviços públicos -- marcas registradas da coaligação no poder. Os dois partidos do Governo (União Democrática Francesa-UDF e União para um Movimento Popular-UMP) mantiveram apenas uma das 14 Regiões que controlavam. A oposição (uma frente em que se destacam os partidos Socialista, Comunista e Verde) passou de oito para 21 governos. Na circunscrição do ministro dos Assuntos Sociais, encarregado das contra-reformas, a esquerda obteve a primeira vitória em cem anos.
O resultado veio na sequência de uma série impressionante de mobilizações sociais, que envolveram professores, artistas, ferroviários, servidores públicos, jornalistas, pesquisadores, juízes e advogados. Protestos com objetivos semelhantes, e ainda mais maciços, sacodem a vizinha Itália, onde um milhão de pessoas foram às ruas na sexta-feira (26). Contudo, tanto na como na Itália, os governos apressaram-se a assegurar que as políticas contestadas pelo voto e pelas ruas permanecerão.
Em Paris, um dia depois de ser massacrado pelas urnas, o presidente Chirac anunciou que manterá o primeiro-ministro Raffarin no posto e insistirá no seu programa de governo. De Bruxelas, onde se encontrava no dia em que a Itália parou, Silvio Berlusconi mandou dizer: “Não se volta atrás. Avante com a ‘reforma’ da Previdência”. Acrescentou que, em busca da “eficiência” económica, pretende propor o fim dos feriados e o pagamento parcial dos salários nas férias. Na edição que circula esta semana, a revista britânica "The Economist" publica um caderno especial propondo que os idosos sejam estimulados a trabalhar após os 65 anos – como assalariados “ilegais legalizados”, sem registro em carteira e sem custo social para os empregadores. Mesmo no Brasil ou Alemanha, onde partidos de esquerda estão no governo, adoptam-se políticas semelhantes. Que estranha força terá transformado os velhos direitos sociais num sonho cada vez mais inatingível?
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