Um texto de José Saramago, lido em Madrid, saúda manifestações mundiais contra a guerra e vê, na rebelião espanhola, o caminho para enfrentar “novos” fascismos.
Madrid, capital moral da Europa
José Saramago
Não à guerra. Sim à paz. Não à ocupação. Sim ao direito de viver livres. Hoje, Madrid é a capital moral da Europa; certamente não é a capital política dos europeus nem a capital económica nem muito menos a capital militar. Mas é, clara e rotundamente, a capital moral desta Europa a que ousaram chamar “velha” alguns que da Europa sabiam e sabem muito pouco, e que de sua suposta juventude presumiam demais.
Os 200 mortos no infame atentado de 11 de março vão ficar para sempre na memória e no coração de Madrid. Cada um será nesta cidade uma imagem que encontraremos pelas ruas. Cada um, um olhar que nos interrogará sobre o passado. Cada um, uma exigência e um compromisso.
No dia seguinte, com os olhos molhados e a dor colada à alma, Madrid saiu em massa às ruas. E com Madrid saiu a Espanha inteira de suas casas. Pela Espanha, saíram a Europa e o mundo. Em muitas cidades e povoados do outro lado das fronteiras soaram os sinos das igrejas e as sirenes das fábricas. E todos os minutos de silêncio cumpridos fizeram muitas horas de luto. Madrid não estava só. Espanha não estava só. Uma onda de solidariedade empapada de lágrimas mostrou a todos um clamor unânime contra a barbárie terrorista. Um clamor geral contra o terrorismo interno e externo e também, como conseqüência de um tal crime, contra todos os demais terrorismos de todas as cores e frações: os de negro e os de azul, os de verde e os de castanho. Ninguém ignora que se tingiram nestas cores nefastas camisas no passado.
Cores disfarçadas, idênticos objetivos
Ninguém pode ignorar que hoje, sob a capa dos melhores propósitos e as intenções mais protestoras, novos autoritarismos estão ameaçando o mundo. Usam as camisas sob a pele, mas a sede de poder é idêntica. Os processos mudaram, mas os objetivos são os mesmos.
Há um ano, milhões de pessoas saíram à rua para gritar “Não à guerra!”, e tentar, deste modo, ser obstáculo aqueles que se empenharam a enveredar, em nome da guerra preventiva, para o que é simplesmente terrorismo de Estado. Muitos de nós estivemos aqui, e levantamos cartazes de paz e gritos de esperança, mas a guerra não foi detida. Para o senhor Bush e seus dois acólitos principais - os senhores Tony Blair e José Maria Aznar - nós éramos, no melhor dos casos, uns pobres ingénuos, mentalmente incapazes de compreender a sublime majestade da gesta bélica que se preparava. E no pior dos casos, uns miseráveis traidores da civilização ocidental, que não merecíamos o pão que comíamos.
Não importava que a famosa gesta bélica tivesse sido apenas um emaranhado de grosseiras manipulações e falsidades. Não importava que, a cada três palavras, que eles proferiam, duas fossem mentirosas e uma terceira duvidosa. Não importava que os motivos apresentados para desencadear a guerra tivessem sido feitos em pedaços em poucos dias. Orgulhosos na estratégia de enganação sistemática como instrumento de manobra política, Bush, Blair e Aznar dedicaram seus ofícios e misteres a passear pelo mundo seus impagáveis narizes de Pinocchio. O ano passado entrará seguramente para a História como aquele em que mais mentiras foram ditas.
Rio que sobe à superfície
E vocês e nós, os milhares e milhares que saíram à rua há um ano, à primeira vista, terminadas as manifestações, não haviam feito nada a não ser voltar para casa, como se, vencidos e humilhados pelas manhas e pela mentira organizadas, de repente se lhes faltasse a própria consciência vossas razões. Hoje, aqui, podemos afirmar que não foi assim.
As mobilizações de protesto e de reivindicação de paz, reunidas em Madri e em todas a Espanha, foram se convertendo, sem que se dessem conta, no rio Guadiana, que deixa a superfície para conseguir seu caminho sob o solo. E, à maneira do Guadina, o outro rio oculto em que vocês se transformaram, subiu de súbito à superfície, quando ninguém mais o esperava. Ocorreu isso no dia 14 de março de 2004. Uma coisa não tem a ver com as outras, dirão alguns. Mas sim tem a ver que, sacudida pela dor, afogada pelas lágrimas, a palavra paz voltou a encontrar o caminho de nossas gargantas e o “Não à guerra!” retomou sua primitiva força, para logo dobrá-la e até multiplicá-la.
O que parecia adormecido despertou e a partir de agora nada nem ninguém nos poderá calar. Não à guerra! Não, não, não, não e não!
Publicado em Porto Alegre 2003: 24/03/2004
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