terça-feira, dezembro 16, 2003

Aborto - o crime está na lei

Recomeçou hoje, em Aveiro, o julgamento de sete mulheres acusadas da prática de aborto, mais os respectivos maridos ou companheiros. Longe vão os tempos do sorriso seráfico de Bagão Félix, em nome dos movimentos do NÃO, garantindo que nenhuma mulher se sentaria no banco dos réus por ter praticado um aborto, a lei era apenas um condicionante moral… Está à vista, em Aveiro como na Maia - onde, apesar de não terem sido condenadas, mais de uma dezena de mulheres viram a sua vida devassada e foram acusadas pelo supremo crime de terem recorrido ao aborto clandestino, em último recurso – já que uma lei retrógrada as impediu de recorrer a uma instituição pública de saúde e não tinham dinheiro para ‘ir às compras’ a Londres… nem sequer a Vigo ou Badajoz.

Em desespero de causa, perante todas as sondagens que davam vitória clara ao SIM, os chamados movimentos ‘pró-vida’ prometeram apoiar todas as mulheres vítimas de gravidez indesejada e, num assomo de ousadia, defenderam campanhas de planeamento familiar que prevenissem esse tipo de acidentes – como se fosse possível tapara o sol com uma peneira… O resultado é conhecido: 70% dos eleitores ficaram em casa ou preferiram a praia, fruto da chantagem moral e religiosa ou da confiança nas sondagens. Passados cinco anos, Bagão Félix é ministro do Trabalho e da Segurança Social mas as jovens e menos jovens que contraem gravidez indesejada, seja fruto de violação ou de outras causas, continuam entregues a si mesmas, na mais angustiante das solidões.

A actual lei fecha-lhes praticamente todas as portas: basta dizer que na Maternidade Alfredo da Costa, o principal estabelecimento de saúde materna do país, se fizeram apenas 72 IVG em 2001 - uma diminuição face às 107 efectuadas em 1999 - em grande parte relacionados com malformações do feto, o que exclui à partida a esmagadora maioria dos milhares de abortos praticados anualmente em Portugal. E a lei amarra-se a si própria, pela ausência de alternativas à “objecção de consciência” de médicos e outros profissionais – nalguns casos, apenas um expediente interesseiro para quem tem interesses no negócio chorudo do aborto clandestino; na mira do lucro fácil, derretem-se todos os pruridos e dores de consciência…

Hoje, os impropriamente chamados movimentos ‘pró-vida’ deixaram cair a máscara humanista. José Pedro Ramos Ascensão, presidente da associação ‘Mais Família’ declarou sem corar que “a primeira grande agressão à sexualidade humana e o início da sua fragmentação é a contracepção”. Um congresso que decorreu na Universidade Católica condenou aquilo a que chama “uma situação de sexo sem amor, amor sem filhos, filhos sem sexo, com todas as terríveis consequências ao nível da estruturação básica destas mesmas sociedades: filhos sem pais, pais divorciados, a multiplicação de uniões precárias, instáveis e não-duradouras, entre outras”.

Não pode haver manifesto mais claro de fundamentalismo religioso e de chantagem moral que nada fica a deve aos “ayattollahs” – sem esquecer que nos próprios EUA, Bush e os grupos fanáticos protestantes conduzem uma campanha com o objectivo de criminalizar o aborto, em Estados onde a sua prática é legal há décadas. Em contraste com estas atitudes, em Portugal começam a surgir no seio da igreja católica vozes desalinhadas com a intolerância do Vaticano – é o caso das recentes declarações dos Bispos do Porto e de Lamego contra a penalização das mulheres.

O problema, porém, persiste com a actual lei. E não se pode pedir aos tribunais, juízes e delegados do ministério público que finjam que a lei não existe ou que absolvam as rés e os réus como um padre absolve o pecador na confissão… Desde logo porque essas mulheres e esses homens não cometeram qualquer crime: o crime está nesta lei retrógrada que, mais uma vez, envergonha Portugal na Europa. É que hoje até os defensores desta lei se mostram envergonhados e não deixa de ser curioso ouvir os porta-vozes do PSD e CDS-PP declarar que nunca defenderam a condenação das mulheres. Mas o cúmulo é a proposta do PSD: o aborto passaria de crime a contra-ordenação, punível com multa – será uma nova forma de combater o défice?

Perante tanta hipocrisia sacrista e já que não pude ir a Aveiro, só encontro uma forma de manifestar a minha solidariedade e revolta: dar ainda mais força à recolha das 75 mil assinaturas da petição para um novo referendo, que ponha fim à vergonha do aborto clandestino em Portugal.

Alberto Matos - Crónica semanal na Rádio Pax – Beja - 16/12/2003

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