"O TEMPO DE SEMEAR É AGORA. COMO VAMOS FAZER?"
Lubango, Huíla, quinta feira dia 30 de Outubro de 2003
6h20 - O Padre Pio e o Domingos batem à porta da casa onde estamos hospedadas: apesar dos esforços da noite anterior e desta madrugada, não conseguiram ainda um carro.
Alguns parceiros não tinham veículo disponível; outros pura e simplesmente recusam ligar-se a uma posição no conflito, nem que seja apenas através de um carro identificado ou identificável.
O programa era irmos visitar uma comunidade rural a cerca de cento e quarenta quilómetros do Lubango, no vale do Tchimbolelo, comuna de Chibemba, Município dos Gambos.
Enquanto continuavam a tentar arranjar transporte, aproveitamos para acabar de ler o relatório sobre a última vaga de incidentes na zona: "Pronunciamento Público sobre a Violação dos Direitos Humanos na Kamphanda (Gambos)".
10h - Temos carro!
No caminho vamos conhecendo um pouco melhor o contexto, graças aos nossos guias: Jacinto Pio Wacussanga e Domingos Faria.
Estas são comunidades agro-pastoris da província da Huila, sul de Angola. As antigas fazendas, antes da independência, tinham-lhes tirado as terras; mas depois chegaram a um compromisso, deixando entre as explorações zonas para as comunidades. Assim, as pastagens e o acesso de animais e pessoas à água estava garantido, não só para os naturais desta área mas também para os grupos que durante parte do ano aqui trazem o gado, em regime de transumância.
Agora, as antigas fazendas foram cedidas a "empresários", para "criação organizada". Quem entretanto lá apascentava ou residia teve novamente que sair; porém, o pior estava para vir... Alguns destes senhores ordenaram a extensão ilegal das suas fazendas, cercando dentro de arames quem lá vive, impedindo a todos os outros os acessos à água - e ameaçando, maltratando, prendendo e torturando quem a tal resiste.
O cenário é magnifico: planaltos arborizados ou com vegetação rasteira, a quase dois mil metros de altitude; e montanhas em volta, sob um céu grandioso.
12h - Já passámos pontes sobre rios com grandes pedras acolhedoras, onde mulheres lavam roupa e crianças tomam banho. Passámos por um grande lago de água branca, com pessoas e animais à volta. Agora vamos numa picada, com vegetação cerrada à direita e uma vedação de arame farpado, seguido de uma outra estrada de terra batida e terrenos desbravados, vazios, à esquerda (ssta cena vai depois desdobrar-se interminável por colinas e vales à nossa frente: parece uma auto-estrada de duas faixas de picada, com arame farpado à laia de separador).
Primeira paragem: caminhamos "mata adentro" até darmos com umas casas abandonadas; de algumas só sobram vestígios. Ali morava uma família que se mudou para outro local, mais adiante: cansados de dormirem nas silvas, ao frio e a jeito das cobras, procuraram um sitio mais resguardado das investidas de quem passa na estrada ...
Prosseguimos por carreiros ate ao novo kimbo. O casal idoso e uma das noras estão lá, os dois filhos e a outra nora estão a trabalhar fora, nas Sementeiras ou com o gado. Somos muito bem recebidos (à Ana Margarida oferecem dois frutos exóticos. Esquecemos o nome!). O Padre Pio dá o recado que trazia para um dos filhos, pergunta pelas outras pessoas; e traduz para nós. Da conversa retemos a expressão do velho ao dizer-nos que deu os seus dois únicos bois de tracção como "pagamento" pela libertação do filho.
13h - Entramos nos terrenos ilegalmente demarcados e cercados. Vamos visitar duas das famílias que não saem da sua terra: pessoas e animais (de pequeno porte; ao gado bovino preferiram faze-lo sair) num bonito pedaço de terra. Sentamo-nos a conversar em bancos e troncos, debaixo de uma arvore.
Contam-nos como a comunidade em geral está unida; mas também há gente comprada, capatazes e outros trabalhadores das fazendas; custa-lhes muito ver irmãos contra eles, a dizerem para desistirem e saírem.
Mas não saem. Apesar dos tiros que lhes mataram animais; apesar das ameaças e represálias de toda a ordem; apesar de terem sido levados para um contentor - a prisão privativa, na fazenda da Kamphanda - e espancados, torturados com aguilhões eléctricos (aparelhos para acoitar e forcar o gado bovino, por exemplo na hora de ir para o matadouro); como tantos outros, acusados com ou sem provas de terem roubado gado, ou de serem familiares dos supostos ladrões ...
As queixas destes casos deram entrada em tribunal, com o apoio, primeiro de uma, agora de quatro, organizações da sociedade civil. Mas o essencial passa-se é lá mesmo, no dia a dia... e depende deles próprios. Por exemplo, quando isto veio a público, os gerentes da fazenda em causa redobraram as pressões e ameaças (também isto foi denunciado); os membros da comunidade deram então como motivo para permanecerem nas suas casas e terras o facto de não terem feito ainda a debulha. E trataram de debulhar devagar, ganhando o tempo necessário a que os processos se adiantassem e os casos fossem mais conhecidos, o que por agora levou ao abrandar das pressões - os capangas passam só de longe.
Porém, como estão cercados e o gado de tracção está fora, é mais difícil fazer a sementeira. Esta é a sua grande preocupação, neste momento. As primeiras chuvas estão a cair; semear é agora. Além disso, se semearem, o gado do fazendeiro, à solta ali à volta, vai-lhes destruir as plantações. Como vão fazer? O que vão comer, depois?
14h - Com os dois homens destas famílias, vamos visitar dois lideres e suas famílias, e uma outra família atingida directamente por estas desgraças. Infligidas por gente que se desumaniza ao ponto de darem de comer a quem chega, para depois o torturarem ate que toda a comida que entrou tenha saído.
Um dos mais velhos, um líder por saber e valor, não por nascimento nem indicação de algum poder, diz que não podem esperar mais: sem acesso a água e com famílias a viver em cercados, terão que destruir as vedações ilegais.
Concordamos ... e vimos a tremer por todos eles.
Por isso vos pedimos para passarem palavra. Para divulgar o mais possível, usando também o relatório anexo.
Por aquela gente tão corajosa, que é uma unidade com aquela terra tão forte e tão suave.
Os kimbos, residências da família alargada, são harmoniosos. Bem situados, bem distribuídos, em simbiose com as árvores, as plantas, a paisagem: todas as casa são de adobe com cobertura de capim. A maior parte das famílias parece ter bastantes animais; algumas têm centenas de cabeças de gado bovino.
Mas estão 70 km longe da estrada de asfalto. Pouca gente tem alguns rudimentos de português. Não há escola nem posto médico; uma pequena construção faz as vezes de loja-cantina, onde se trocam produtos...
Trouxemos para a cidade um dos mais-velhos, acompanhado por um filho, porque tinha que prestar declarações complementares `a sua queixa.
Voltámos mais ricas: em dois frutos, cinco ovos, uma galinha, mas sobretudo em dois amigos, um grupo como referencia, e uma grande lição dada por aquela comunidade de cultivadoras e pastores da vida.
Ana Margarida Advirta Guerra
Maria do Rosário Fiadeiro Advirta
PALAVRAS, APENAS
Para quê perdermos o nosso tempo precioso
com esses infindáveis jogos de palavras?
Já reparaste no que se está a passar
dentro e fora de ti?
Olha! Olha de verdade
para esse céu de Outono.
Olha! Olha de verdade
para a beleza que trazes dentro de ti.
Se isto te faz pensar em palavras,
terás que olhar de novo e ver melhor...
(M. Mealer)
Maria do Rosario Advirta
Email: rosario.advirta@mail.pt
Relato breve dos acontecimentos em Kamphanda, Gambos.
(Caso de torturas e quimbos cercados)
1.1. Antecedentes
Em princípios de Janeiro de 2003, as populações de Kamphanda, representadas por dez lideres tradicionais, acorreram aos préstimos da Missão da Quihita, e por esta a ALSSA, para achar intercessão para as seguintes ocorrências que tinham estado a ocorrer mais ou menos por volta daquela data:
Hostilidade bestial das gerências de algumas fazendas contra membros da comunidade, que inclui a tortura e ameaças com armas de fogo aos transeuntes;
Morte de animais domésticos da comunidade dentro dos perímetros de algumas fazendas;
Ampliação de fazendas para espaços novos espaços sem consultar a comunidade local, ameaçando com violência os habitantes mais renitentes;
Vedação de Quimbos ( residências, lavras, pessoas e seus haveres ) dentro da fazenda ampliada, limitando a movimentação de pessoas quando estas têm de ir à água, lenha, cemitérios, hospitais, etc.;
Prisão arbitrária de membros da comunidade. Em uma das fazendas as pessoas foram encarceradas dentro de um contentor, onde foram espancadas e electrocutadas com um instrumento de açoitar o gado, a que comumente chamam aguilhão eléctrico. Até agora, foram contabilizados vinte casos, incluindo mulheres com crianças latentes e mulheres grávidas. Outras vítimas de torturas e cárcere privado foram até há bem pouco tempo trabalhadores da mesma fazenda;
Queimada criminosas de bens, incluindo de cereais, de membros das comunidades, perigando completamente a sua segurança alimentar;
1.2. DECLARAÇÃO DO PROBLEMA EM MATÉRIA DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E CRIANÇA.
Em grande parte das fazendas compreendidas na Tunda dos Gambos se assiste a uma violação e exploração dos direitos da mulher e crianças, consubstanciadas em:
Emprego de mão-de-obra infantil e de adolescentes, em trabalhos pesados de vária índole, colocando em risco a sua própria esperança de vida. As regiões do Vale do Tchimbolelo e da Tunda dos Gambos têm cerca de 120 fazendas. Se todas estiverem a empregar mão-de-obra infantil (crianças e adolescentes), o resultado daqui a alguns anos será altamente destrutivo para o futuro não só das crianças, mas também, de toda a comunidade;
Ocorrência frequente e generalizada de casos de pedofilia heterossexual, tendo como vítimas, meninas autóctones trabalhadoras ou moradoras da zona, entre 10 a 16 anos de idade, abusos estes enquadrados num quadro geral de abusos sexuais protagonizados pelos donos das fazendas, que vêem nas mulheres locais reservas humanas privadas para as suas depravações sexuais.
Escravidão sexual das mulheres e meninas nativas. Nos últimos dias, graças ao trabalho por nós desenvolvido, têm-se denunciado, entre as populações locais, casos de meninas e mulheres nativas que são arrebanhadas e que vivem em regime de semi-liberdade e servem de concubinas aos fazendeiros e seus amigos;
Discriminação contra as mães e os filhos nascidos das relações entre mulheres autóctones e os fazendeiros , os quais nunca foram condignamente assumidos pelos seus parceiros ou pais (os fazendeiros), não gozando portanto, de nenhuns direitos;
Desrespeito generalizado aos mais elementares princípios declarados na lei, para os contratos de trabalho, por parte dos fazendeiros, sendo as mulheres e as crianças as maiores vitimas.
Difícil acesso aos serviços sociais básicos como a saúde e educação provocados pela escassez de infra-estruturas, e nalguns casos, inexistência total dos mesmos, o que contribui muito para a elevada taxa de analfabetismo que se regista no município dos Gambos.
Todos estes problemas se passam perante o silencio cúmplice das autoridades incumbidas de representar o Estado o que se depreende do facto de nunca se ter encarado com seriedade os problemas vividos pelas populações locais e em face da relativa estabilidade político-militar que se viveu na região em causa, mesmo nos tempos de maior instabilidade no país. A actuação dos órgãos do estado se tem limitado em conceder terras para fazendas naquele espaço geográfico e em recrutar os filhos dos nativos para a guarda pessoal do Presidente da Republica.
Na generalidade, assiste-se hoje em matéria de violação de direitos humanos, a um quadro igual ou pior do que aquele que se viveu na época colonial e a mulher é especialmente vulnerável aos factores acima apontados, por um lado por ser sobre ela que recai o fardo mais pesado das responsabilidades familiares e por outro, por as praticas costumeiras a terem relegado para um plano secundário, na abordagem directa das questões que afligem a comunidade.
2 - O que foi feito pela comunidade e pela equipe de advocacia no terreno, antes da instauração dos Processos Crime no caso dos cárceres privados e torturas em uma das fazendas :
Facilitação de um encontro entre a comunidade local e Administração Comunal da Chibemba para tentar dar solução ao caso dos cercos e da morte de animais domésticos (31 /01/03 );
Contacto com o comité do Partido MPLA no Tchimbolelo para busca de soluções (Líderes tradicionais locais);
Dar a conhecer a Policia de Investigação no Município da Chibia as ocorrências na aldeia de Kamphanda (Esposas de algumas das vítimas de torturas e cárcere privado);
Constatação da existência de mandados de solturas para duas das pessoas indiciadas nas torturas, passadas pela Procuradoria Provincial da Huíla, sem se fazer justiça, tendo sido apreendido apenas o instrumento com que as vítimas eram electrocutadas ( o aguilhão eléctrico);
4 - Plano de actividades já realizadas com as vítimas de torturas e cárcere privado, com o apoio financeiro da FOS Bélgica :
Facilitação de um encontro entre o Arcebispo do Lubango e as vítimas de torturas incluindo mulheres (25/05/03 ). Estiveram igualmente presentes a Associação Mãos Livres, a Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz, o Vigário-Geral da Arquidiocese do Lubango, o Vigário Episcopal do Lubango, o Chancelar da Arquidiocese do Lubango;
Encontro entre: ACC, Mãos Livres e Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz para divisão de papeis para a busca de soluções no caso em referência (26/05/03);
Mobilização e registo das vítimas em fichas individuais de violação de Direitos Humanos na localidade de Vimbu Município dos Gambos, ( de 29-31/05/03) ;
Recolha das vitimas para consultas medicas e para completar os relatos/depoimentos para a constituição dos processos judiciais, ( de 2-7/06/03) ;
Elaboração de cartas, narrando os acontecimentos e pedindo intercessão, para Governo Provincial, Administrações Municipais e Comunais ( da Chibia e Gambos ) Procurador Provincial da República, Delegado da Justiça, Ministro da Justiça, Procurador da República, Deputados da 9ª Comissão, Presidente da República, relatando as ocorrências em Kamphanda (4/07/03);
Elaboração e reconhecimento notarial das procurações para constituição do processo crime (de 3-4/06/03);
Entrega do dossier às Mãos Livres em Luanda e consequente proposição do processo crime na Direcção de Investigação Criminal da Huíla ( 9 - 10/06/03 );
Contacto com a Amnistia Internacional e AJPD, medias e parceiros diversos via E-mail;
Suporte logístico aos contactos subsequentes entre o Governo, a policia e a comunidade.
5 - Actividades desenvolvidas pela comunidade local dentro do papel de responsabilidades traçado com a nossa equipe de advocacia:
Denuncia de casos de torturas e violência diversa contra as populações dos Gambos;
Impedimento da vedação de espaço comunitário na Kamphanda;
Encontro com o Sr. Fazendeiro Faustino Muteka, Sr. António Bicho, Sr. Pinto, ( 25/05/03 );
Monitoria dos espaços da comunidade permanente;
Encontro com o Sr. Fazendeiro Faustino Muteka ( 6/06/03 );
Encontro dos sobas de Kamphanda com Sua Excelência o Primeiro Ministro da Republica de Angola, na Chibia ( Outubro de 2003);
Resistência passiva aos cercos de quimbos (manutenção das pessoas dentro da área vedada até que se ache uma solução satisfatória).
P'la ACC
Pe. Jacinto Pio Wacussanga
Nota: colocado na lista ATTAC por Isabel Figueiredo.
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