Carta aberta a um ministro esquecido - 2ª parte
Apresente, por exemplo, no Conselho de Ministros, a urgência de uma investigação séria, por um período nunca inferior a três anos, acerca as actividades culturais de Cancun, e dê-se como voluntário para liderar a equipa de investigação. O sol das praias, os casinos e bares nocturnos, as mexicanas bonitas, os mexicanos sempre bem dispostos, Desperados, Tequilla, mimos por todo o lado, a cerveja a três euros, entradas condicionadas nas discotecas, mas sem a rudez nem a violência do modo europeu. Quantas coisas poderia o país importar do México para melhorar, quem sabe?, a qualidade cultural e turística que apresenta de ano para ano às lagostas inglesas e alemãs.
Há tanta coisa que o senhor poderia fazer!, coisas que agora nem me lembram, mas poderiam lembrar a si. Coisas a ser obviamente pensadas, ponderadas e estudadas nos enquadramentos do investimento público e nas disponibilidades do orçamento de estado. Isto não poderia ser feito em cima do joelho. Seria uma reforma, e ora aí está uma palavra que lhe ficaria muito bem dizer na televisão. Envida a imagem morta de qualquer um.
Pense no assunto.
É que neste momento, o que eu imagino é o sofá de uma sala, alumiada num lusco-fusco preguiçoso e deprimido. Um cheiro intenso a tabaco. Uma caixa aberta de pizza, de entrega ao domicílio, sobre uma mesinha própria entre o sofá e o televisor. O sofá é, aliás, a sua nova morada. Vejo-o nele acomodado como se já lá tivesse nascido e crescido até à posição de maior conforto. Talvez uma mantinha o acomode melhor. Barba de três dias, despenteado, enrolado no robe que a esposa lhe ofereceu há alguns anos, que se foi embora quando isto já começava a arrastar-se, e pijama por debaixo. Alguém que apenas muda de posição para sentar-se e comer uma por outra dentada de uma fatia de pizza, porque não dá nenhum jeito à garganta engolir estando dobrada. Ir à casa de banho é um esforço grande, pelo que se aguenta sempre até, pelo menos, ao intervalo seguinte.
A pensão que o governo lhe disponibiliza mensalmente – por invalidez? – até dará para não ter que olhar às despesas, como alguns que eu conheço. E se a situação é já esta, ao menos contrate uma mulher-a-dias – vá buscá-la ao Centro de Emprego, que sempre lhe pagam metade do ordenado. Alguém que lhe trate do almoço e lho dê à boca e lhe traga o jornal diário, para o qual nunca terá paciência. E sempre terá companhia para papar quantas novelas as televisões todas elas juntas emitam em horários vespertinos. Talvez ainda assista aos telejornais, na esperança de alguém ainda se lembre de si
como eu me estou agora a lembrar de si
e como não lembrassem, no mesmo sofá acabará por adormecer, nunca contudo perdendo de vista o telefone fixo – até porque os telemóveis estão proibidos de entrar em casa –, próximo do braço direito do sofá. A esperança é sempre a última a morrer. Adormecerá fazendo paciências no portátil, também em cima da mesinha. Talvez a custo ainda dê uma vista de olhos nalguma revista que um dos seus secretários esqueceu no jantar mensal que, com a pensão que lhe pagam, costuma patrocinar em sua casa, só para que ainda se vão lembrando da cara uns dos outros – secretários padecendo dos mesmos males que o senhor, esta-se mesmo a ver –, e tudo para que no dia seguinte volte a acordar tarde, não fazer a barba, não tomar um duche nem pôr a gravata.
Para si, meu caro, num tempo de crises, de défice irritado e falta de produtividade, economia adormecida – ou estagnada – e talhadas orçamentais em toda a parte, a coisa não está para menos. É preciso improvisar. Manifestações artísticas. A arte é tão subjectiva que qualquer evento lhe daria credibilidade. Lembre sempre que o seu homólogo brasileiro faz concertos. Por isso, é premente que alguma coisa faça a respeito. Faça, por exemplo, desporto. Os médicos aconselham, e na sua idade mais ainda.
Entretanto, alguém terá guardado fotos suas do album do liceu, ou da sua primeira comunhão. Continuarei à procura. Os melhores cumprimentos.
Eduardo César
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