quinta-feira, outubro 09, 2003

Herbários...

O pessoal mais velho que anda por aí teve que fazer (por isso sabe do que estou a falar); eu fiz e continuo a fazer porque uma das coisas que faço (quando não estou desempregado) é botânica. Para além de ser uma coisa útil, já que as plantinhas assim conservadas podem ser identificadas com toda a calma, têm também um carácter antropo-arqueológico extremamente cativante – é que utilizo jornais para fazer os ditos herbários, e ontem abri um herbário com jornais de 1991, 1992, 1993 e 1994. É como abrir um baú há muito tempo fechado, cheio de coisas que entretanto esquecemos...

Curiosamente, para minha surpresa, a resguardar um Astragalus lusitanicus de qualidade superior, vinha lá um artigo de Pacheco Pereira, com fotografia e tudo, onde o grande timoneiro da Blogosfera ainda tinha cabelos escuros mas com a barba a grisalhar ligeiramente. O artigo saiu no Diário de Notícias de 17 de Setembro de 1992 onde fala dos anos 60 e claro, do PCP (contei 11 PCP’s e 1 PS).
O telejornal ainda durava 30 minutos e havia séries ás 20:40 e filmes às 21:30 (é verdade verdadinha, tirado de um jornal que aconchega uma Phlomis purpurea em óptimo estado). Israel e Palestina estavam quase quase a acordar a paz definitiva e duradoura (num jornal com os restos mortais de uma Ophrys sp. e de um Aceras antropophorum – as orquídeas conservam-se muito mal...).
Sampaio estava à frente dos destinos de Lisboa, não do país, tendo resolvido o importante problema da sede dos Alunos de Apolo, tendo por isso sido convidado para abrir o baile de comemoração dos seus 119 anos; O 386SX era preferível ao AT286, com 256 K de RAM (mas é possível passar a 512), tendo um disco de 40 MB (O Windows 3.0 ocupa apenas 6MB) – tudo isto salpicado por folhinhas de Asparagus albidus.
Depois da 1ª guerra do golfo, um analista sediado em Londres dizia: “Fechámos os olhos porque alguns homens de negócios queriam fazer dinheiro e porque Saddam era um instrumento útil ocntra o Irão, Saddam é um Frankenstein criado pelo Ocidente” a acompanhar uma fotografia de família com Saddam, a mulher (loiríssima) e 11 descendentes sorridentes (imagino que filhos e netos) – Lavatera maritima nos entrefolhos da notícia – Tieta do Agreste era a telenovela do momento.
70% dos Portugueses acredita que a guerra será longa, enquanto que 43% dos Franceses acredita que Israel utilizará a bomba atómica (lá dentro, uma inocente Rutha chalepensis, que nunca percebeu nada de guerras a sério ou preventivas – no entanto chama-se erva das bruxas, por ter sido usada como abortiva em tempos idos); no Fórum Picoas passava a Palombella Rossa; os Alfa ainda existiam (nas Amoreiras passava Aracnofobia e Tartarugas Ninja).
Para o primeiro Ministro Inglês, John Major, o Iraque está prestes a utilizar armas químicas (Leontodon taraxacoides repousa em cima desta notícia).
Dentro de um outro jornal, por detrás de uma Beta patularis (segundo exemplar recolhido em Portugal na Arrábida, depois de ter sido encontrado pela primeira vez em Portugal 2 anos antes, no Cabo de S. Vicente), a notícia “fresca” de uma das maiores tragédias da 1ª guerra do golfo: “Abrigo atingido não era centro militar. O Iraque afirma que pelo menos 500 pessoa morreram no bombardeamento do abrigo onde se refugiavam civis, mas o pentágono negou e diz que se tratava de um “bunker” militar. No Ocidente vários países europeus responsabilizaram também Saddam Hussein pelo sucedido, acusando-o de utilizar cidadãos como escudos humanos.” Sim, é o mesmo abrigo descrito por uma iraquiana 12 anos mais tarde:

Lembro-me de 13 de Fevereiro de 1991. Lembro-me dos mísseis que caíram no abrigo de Al-Amryiyah – um abrigo civil contra as bombas numa zona residencial densamente povoada de Bagdad. Bombas tão sofisticadas, que a primeira penetrou até ao coração do abrigo e a segunda explodiu lá dentro. O abrigo estava cheio de mulheres e crianças – rapazes com mais de 15 anos não podiam entrar. Lembro-me de ver imagens de pessoas horrorizadas a escalar a vedação que cercava o abrigo, chorando, gritando, implorando para saber o que tinha acontecido à sua filha, à sua mãe, ao seu filho, à sua família que tinha procurado a protecção dentro das paredes do abrigo.

Lembro-me de ver arrastar corpos tão carbonizados que era impossível dizer que eram humanos. Lembro-me de ver pessoas ansiosas, correndo de cadáver em cadáver para tentar reconhecer os seus ente – queridos.... Lembro-me de ver os trabalhadores que limpavam o abrigo a desmaiar com as cenas insuportáveis que se lhes deparavam dentro das paredes. Lembro-me de toda a área estar empestada com o odor de carne queimada durante semanas e semanas a fio depois do bombardeamento.

Lembro-me de visitar o abrigo, anos mais tarde, para prestar a minha homenagem ás 400 pessoas que sofreram uma morte atroz durante a madrugada e ver as linhas fantasmagóricas de contornos humanos gravados nas paredes e no tecto.

Lembro-me de um amigo da minha família que perdeu a sua mulher, a sua filha de 5 anos, o seu filho de 2 anos e a sua cabeça (tendo enlouquecido) a 13 de Fevereiro.

Lembro-me do dia em que o Pentágono, depois de várias desculpas disse finalmente que tinha sido um erro.


PP

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