Hegemonia e contra-hegemonia
Emir Sader (2003-09-16) - América Latina en Movimiento
"Um tigre de papel" – a caracterização de Mao-Tse-Tung parece aplicar-se, mais do que aos EUA de quatro décadas atrás – quando dividia a hegemonia mundial com a URSS -, com a potência unipolar de hoje. A lista de suas debilidades parece interminável - e os críticos, de esquerda, como Wallerstein, Samir Amin, Arrighi, entre outros, mas também os conservadores, como Todd, não se cansam de apontar, praticamente com razão em todos os casos.
A economia – ponto mais forte da ascensão norte-americana a primeira potência mundial – se revela claramente mais frágil do que foi essa economia no ciclo longo expansivo anterior, começado ainda nos anos 40 e concluído na década de 70. De grande exportador de capitais passou a maior importador de capitais, para recompor seus déficits comercial e público. Seu equilíbrio econômico e sua capacidade de reprodução de capital depende dos capitais investidos em suas bolsas – em particular daqueles provenientes da Ásia – e das importações provenientes do Japão e da China. Sua moeda se mostra vulnerável, passível de ser afetada por uma extensão crescente das áreas do euro no mundo – inclusive entre os países da Opep, apesar da derrubada do regime de Sadam Hussein.
De economia industrial passou a economia primordialmente de serviços. Sua economia entrou numa recessão profunda e prolongada, depois do ciclo expansivo dos anos 90, pela bolha especulativa que finalmente explodiu, depois da "exuberância irracional" em que tinha se assentado. O consumo familiar, motor dessa expansão, está bloqueado por um bom tempo, inviabilizando uma recuperação minimamente sólida. Além disso, a desregulação económica comandada pelos EUA nas duas últimas décadas e meia levou à hegemonia do capital financeiro, na sua modalidade especulativa, na economia mundial, o que gera instabilidade, até mesmo dentro dos EUA, com fuga de capitais e ameaça de saída generalizada, conforme as taxas de juros seguem baixas, o dólar se desvaloriza e a economia não apresenta sinais de uma retomada firme.
Socialmente, é de longe o país mais desigual entre todos os países do centro do capitalismo, tendo estendido a jornada de trabalho até ocupar o lugar de país com mais longa jornada em todo o mundo. Os EUA podem ser considerados um grande caldeirão social, que pode gerar extensas formas de explosão social e de perda de legitimidade do Estado norte-americano.
Politicamente, o rumo adoptado pelo governo Bush levou os Estados Unidos a armadilhas que, primeiro, o isolaram no plano internacional, apesar de ter unificado o país internamente. E agora o fazem pagar o preço do tipo de problema gerado internamente tanto no Afeganistão quanto no Iraque, levando de volta os problemas para dentro dos EUA, com a quantidade de mortos e a incapacidade do país de reconstruir o Iraque sozinho, tendo que pedir ajuda a países que ofendeu e menosprezou no momento da guerra.
Tudo isso leva a acumular-se uma grande quantidade de elementos de fragilidade na capacidade hegemónica dos EUA. Anuncia-se, em base a isso, o fim da hegemonia norte- americana no mundo. Esquece-se, quem faz isso, que a hegemonia é uma relação, ela se exerce sobre os outros e, portanto, sua força ou sua fraqueza depende sempre da força e da fraqueza dos outros sobre os quais se exerce a hegemonia.
Nesse sentido, os EUA são, isoladamente, mais débeis do que foram há algumas décadas. No entanto, a comparação, do ponto de vista da capacidade hegemónica, não é entre os EUA em dois momentos diferentes, mas entre o EUA e as outras forças mundiais.
A primeira diferença é que no período histórico da bipolaridade mundial é que agora quem ocupava o segundo lugar – líder do campo oposto -, a URSS, desapareceu. Além disso, no seu próprio campo, os EUA viram o Japão completar mais de uma década de recessão e a Europa manter um nível muito baixo de crescimento. Assim, sua posição é muito mais favorável do que a que tinha no período anterior à queda do muro de Berlim. O seu principal adversário, aquele que funcionava como líder do bloco que se opunha ao bloco capitalista, desapareceu, junto com todo o que era o "campo socialista" na Europa ocidental. Só isso já representa uma mudança estrutural altamente favorável aos EUA.
Em segundo lugar, quando a estrutura de poder mundial era bipolar, o enfraquecimento de um dos blocos representava automaticamente o fortalecimento do outro, no que se chama "jogo se soma zero". Tropeços dos EUA representavam o fortalecimento da URSS ou pelo menos dos "não alinhados", um campo em geral dominado pelo antimperialismo norte-americano. Agora a estrutura de poder mundial é unipolar, com disputa para ver quem polariza com os EUA – o fundamentalismo islâmico ou o Fórum Social Mundial de Porto Alegre? Os outros países - sejam europeus ou asiáticos, sejam a aliança França-Alemanha ou a China – não capitalizam o debilitamento norte-americano, salvo conjunturalmente, como no caso da guerra do Iraque para aquela aliança. Mas não se pode dizer que sejam pólos de uma alternativa hegemônica ao predomínio dos EUA.
Com isso, os EUA tratam de propor ao mundo sua forma de vida como praticamente a única – contraposta ao tipo de vida do fundamentalismo islâmico. Daí o interesse de Washington de consolidar a polarização entre Bush/Bin Laden ou Bush/Sadam Hussein.
Assim, a maior força da hegemonia norte-americana vem da debilidade das forças contra-hegemônicas. O "New York Times" escreveu, no momento das imensas mobilizações em vários países contra a guerra, que o outro super-poder mundial seria "a opinião pública". O exagero verbal não impede que efetivamente, polarizado pelo Fórum Social Mundial de Porto Alegre, efetivamente existe uma acumulação de forças para a construção de uma hegemonia alternativa. Desde o grito dos zapatistas, em 1994, passando pelas manisfestações contra a OMC, em Seattle, em 1999, até chegar aos Fóruns Sociais Mundiais, foi se constituindo um corpo de propostas, aglutinando a forças as mais diversas e pluralistas, que começa a aparecer como o núcleo de ideias e de forças contra-hegemónicas. Será o desenvolvimento desta que servirá para medir a força e o tempo de sobrevivência da hegemonia norte-americana.
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