Depois de Larzac, novos desafios
Jacques Nikonoff
Libération, 18 de Agosto de 2003
«Quantos éramos em Larzac: 250.000 ? 300.000 ? ou mais ainda ? De acordo com os comentários lidos e ouvidos, o que mais impressionou foi a participação. Com efeito, o Larzac 2003 foi a concentração mais importante realizada até hoje em França pelos alternoglobalistas [altermondialistes, no original]. Nasceu uma nova força.
O Larzac 2003 testemunha a continuidade da mobilização social da Primavera e confirma a emergência do movimento alternoglobalista como actor importante no debate de ideias, social e político. O movimento encontra-se, de agora em diante, confrontado com quatro desafios.
O primeiro diz respeito à clarificação da sua identidade: o movimento alternoglobalista pretende fazer reaparecer, sob uma nova roupagem, a velha extrema-esquerda ? É o que deseja uma parte da direita. (...). Restabeleçamos os factos. Se uma parte da extrema-esquerda se juntou ao movimento alternoglobalista, trata-se principalmente de militantes da LCR [organização conotada com correntes trotsquistas], em que a maioria traz a sua sensibilidade, honestamente e eficazmente, sem procurar recuperar ou manipular o movimento.
(...). Mesmo que os militantes da extrema-esquerda não representem mais que uma pequena parte do movimento, todos têm aqui o seu lugar, desde que respeitem, como os outros, as regras de democracia do movimento.
Mas a questão da identidade do movimento alternoglobalista não se reduz apenas ao lugar que os militantes da extrema-esquerda ocupam nele. O próprio movimento, e cada uma das suas partes, produz uma imagem e uma identidade, progressivamente, ao correr das palavras, dos actos, das atitudes e das iniciativas. Ora é verdade que uma imagem “esquerdista” parece, por vezes, marcá-lo. É o caso das violências cometidas durante as manifestações; quando palavras de ordem como “radicalização” ou “desobediência civil” são lançadas ao acaso, sem debate prévio e sem conteúdo, ou ainda quando apelos a “descer à rua” são feitos sob qualquer pretexto; ou acções como a da desmontagem do pavilhão do Partido Socialista no Larzac. Em lugar de unir, o extremismo divide. O palavreado, a violência, as gesticulações, o sectarismo que marcam a tradição da extrema-esquerda, anunciariam a derrota do movimento se este a ela cedesse. Os liberais preferem sempre a extrema-esquerda, pois sabem que ela nunca ganhou nada nem nunca alguma vez ganhará. O movimento alternoglobalista deve preferir decididamente a diversidade que faz a sua riqueza e a sua força.
O segundo desafio é o de definir melhor as alternativas que propõe ao neoliberalismo. Da antiglobalização liberal, o movimento passou à alternoglobalização. Esta mudança de designação corresponde a uma evolução profunda que consiste em juntar à contestação, sempre necessária, ao sistema capitalista mundial, a proposta alternativa concreta, operacional, eficaz. Todas as sondagens e estudos políticos mostram que o movimento goza hoje de uma corrente de simpatia maioritária na opinião pública. Em compensação, o movimento permanece muito minoritário no que respeita à credibilidade das suas propostas. É pois neste terreno que os esforços devem ser feitos. Se as propostas alternoglobalistas fossem levadas à prática, no estado em que elas estão actualmente, o mundo já conheceria transformações profundas. Mas é preciso dizer claramente qual é o “outro mundo” que acreditamos possível.
Tomemos alguns exemplos. Sobre o livre comércio, pilar do neoliberalismo, é necessário trabalhar permanentemente na construção de alternativas. A reforma da OMC, ou mesmo o seu desmantelamento, não bastará. É num outro sistema mundial que é preciso pensar, visando substituir a guerra comercial actual, sem limite, por verdadeiras solidariedades e cooperações internacionais. Um outro exemplo pode ser dado a propósito do desemprego. Todo o mundo, ou quase, reconhece que é um flagelo, mas ninguém fala em suprimi-lo. Nenhum “outro mundo” será possível se milhões de cidadãos permanecerem desempregados. Último exemplo: a impotência apontada ao Estado. Sobre esta questão formou-se uma estranha aliança: a dos liberais libertários. Para os liberais, o Estado é um entrave ao livre funcionamento do mercado; para alguns libertários, o Estado não é, por princípio, senão um instrumento repressivo ao serviço das classes dirigentes. Estas duas correntes reencontram-se, no mesmo espasmo, para negar o papel positivo que o Estado poderia desempenhar. Na realidade, o Estado é o que fizerem dele os cidadãos, deve tornar-se o instrumento do interesse geral e ser objecto de lutas sociais para a sua democratização.
O terceiro desafio do movimento alternoglobalista é o de construir as alianças vitoriosas. O movimento deve, em simultâneo, precisar as suas alianças com organizações e escolher as categorias sociais que quer influenciar. A aliança com o movimento sindical é decisiva. Progressos importantes foram feitos nesta direcção. (...). Esta aliança é crucial, pois o movimento sindical tem objectivamente as mesmas reivindicações que o movimento alternoglobalista e constitui a força social mais influente na sociedade.
Depois, o movimento deve claramente abrir-se às categorias populares: desempregados e precários, operários e empregados. Principais vítimas da globalização liberal, não se compreenderia que estas categorias sociais permaneçam à margem no combate contra as causas das suas dificuldades. E depois há a juventude. Uma parte significativa manifestou-se contra Le Pen e contra a guerra no Iraque. Todas as concentrações alternoglobalistas são marcadas por uma presença muito forte de jovens. Em compensação, estiveram completamente ausentes da luta pela defesa das aposentações. Como reforçar a continuidade da sua mobilização ?
O quarto desafio com que se confronta o movimento alternoglobalista é o de melhorar a sua democracia interna. O movimento funciona hoje, à escala mundial e em cada país, através de “plataformas”. Estas últimas reúnem as organizações segundo os temas (OMC, guerra, ...) ou as iniciativas (preparação da contra-cimeira do G-8 ou do Larzac). São os únicos instrumentos de unificação das forças que se reclamam da alternoglobalização, integrando mesmo, segundo os casos, outras forças que não se reclamam de tal mas que desejam participar numa campanha por um objectivo preciso.
Apesar dos progressos realizados, o funcionamento de algumas destas plataformas ilustra bem, por vezes, uma caricatura da democracia. Os esforços devem centrar-se na representatividade destas plataformas e das organizações que nelas participam; sobre a qualidade na condução dos trabalhos das reuniões; sobre os sistemas de “corta-fogo” para desencorajar os grupúsculos que tentam manipulá-las por conta de outrem; para dissuadir as ambições individuais de porta-vozes autoproclamados ...
Neste movimento, a ATTAC ocupa um lugar próprio e propõe-se dois objectivos: desconstruir a ideologia neoliberal, erradicar este vírus dos espíritos, pois somos descontaminadores; construir as alternativas ao neoliberalismo e agrupar as pessoas para o alcançar. Tal é a nossa contribuição para o conjunto do movimento. (...).»
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Tradução livre por APP a partir do artigo colocado na lista da ATTAC – Portugal por Henrique Sousa.
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