Pragmatismo e utopia nos Fora sociais
No público de ontem mais uma vez veio a lume o FSP, e mais uma vez se falava da definição da esquerda como utópica e da direita como realista. O FSP ultrapassa em muito esta dicotomia de esquerda/direita, sendo alguns dos seus mais importantes objectivos comuns às posições do Vaticano, como a luta contra a guerra ou o perdão da dívida externa dos países mais pobres do mundo.
Os Fora sociais por esse mundo fora, enquanto movimento dos movimentos, une-se nos “contra” (contra o neo-liberalismo, contra a discriminação, conta a guerra, contra a ditadura dos mercados....) e reflecte uma certa carga de utopia na frase “um outro mundo é possível”, mas os movimentos que os constituem têm campos de acção muito concretos. A meu ver, este é um dos principais trunfos dos Fora sociais, já que o que caracteriza muitos dos movimentos que o constituem é o pragmatismo, não a utopia: o comércio justo põe em prática um sistema alternativo às leis ditadas pela OMC, contando hoje com mais de 25 milhões de agricultores aderentes; o MST já tem milhares de assentamentos e tornou-se um dos maiores movimentos da América Latina, contrariando o domínio avassalador dos poderosos latifúndios brasileiros; uma crescente legião de ONG para o desenvolvimento implementa projectos concretos em países pobres na área da saúde, da agricultura, da água potável, da cultura e muitas outras, substituindo a ajuda de emergência por uma cooperação duradoura, onde não se dá o trigo mas ensina-se a utilizar outras ferramentas para semear. Mesmo nas áreas das novas tecnologias, o Software livre cresce a olhos vistos, quebrando a tradicional hegemonia das grandes multinacionais de informática.
Muitos outros movimentos lutam por coisas muito concretas, como a cidadania dos imigrantes, direitos dos LGBT ou um desenvolvimento sustentável. E é neste concreto que reside a enorme atracção deste fenómeno: não estamos a lutar no abstracto, à espera que a utopia chegue um dia; estamos a trabalhar pragmaticamente no dia a dia, para construir um outro mundo possível, pensando globalmente para agir localmente, fazendo projectos que combatem a exclusão social, promovendo a cultura popular e modelos alternativos de desenvolvimento, dando terra a quem nada tem e dignidade às minorias étnicas; estabelecendo redes de comércio alternativas, redes solidárias globais, manifestações globais para lutar contra a guerra.
Na sua essência, o FSM constitui-se como uma “Multinacional” dos movimentos sociais, com uma miríade de acções concretas, já em curso, e mais outras tantas na carteira. Porque adiar o sonho utópico para um dia mais tarde é demasiado desgastante, traz-se o sonho para o dia a dia, nas práticas de cada associação e no quotidiano de cada cidadão. Porque o outro mundo possível não é para amanhã, já começou há muito tempo; os Fora sociais apenas deram maior visibilidade a esta realidade, proporcionaram sinergias, acções concertadas e o estabelecimento de uma rede internacional entre movimentos, dentro de cada luta concreta, mas também cruzando todas as lutas. Não é por acaso que no comércio justo se pratica agricultura biológica ou no Movimento dos Sem Terra se luta contra a descriminação da mulher.
É assim que se globalizam resistências e se constrói já hoje um outro mundo possível. E este pragmatismo é ainda mais atraente porque permite a muitas pessoas identificarem-se com um objectivo muito concreto, com efeitos quase imediatos, muito mais que concordar com os complexos alicerces de um mundo utópico, dificilmente consensual ou mesmo viável. A força dos FS está neste pragmatismo, que permite a quem quiser contribuir activamente para um outro mundo possível, com acções concretas que não se traduzem em estatísticas abstractas e futurologias duvidosas mas em pessoas, direitos, pequenas conquistas, seres vivos, e uma carrada de outras entidades absolutamente concretas e palpáveis. Mas claro que a utopia continua fortemente enraizada nesta alter-globalização; afinal, como dizia o outro, o sonho é que comanda a vida....
PP e APP
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