quarta-feira, junho 25, 2003

Ciência e cidadania em Portugal

Como primeiro passo para uma eventual iniciativa de carácter mais abrangente, venho propor para reflexão, um tema tradicionalmente ausente da discussão pública em Portugal: a questão da cultura científica dos cidadãos e das consequências desse estado de coisas para o balanço mais geral do estado de saúde da nossa democracia.

No século passado, no final da IIª grande guerra, a visão que os poderes e os cidadãos tinham da ciência era substancialmente diferente da que existe actualmente. Uma síntese fortemente reveladora do modo de então pensar o papel da ciência, é a que corresponde ao relatório encomendado pelo presidente Roosevelt em 1944 ao então director do Office of Scientific Research, Vannevar Bush. O objectivo do presidente americano era em si mesmo revelador da concepção dominante: no essencial tratava-se de procurar saber como é que seria possível transpor os enormes benefícios que os progressos tecnológicos haviam trazido aos aliados em tempo de guerra, para os vindouros tempos de paz. O relatório deveria apontar que políticas adoptar neste domínio, concentrando-se na questão da utilidade dos avanços científicos na área da saúde, na área da educação dos jovens, e na promoção do investimento (público e privado) em infraestruturas e desenvolvimento científico.

Deste relatório (intitulado Science, the Endless Frontier) o que perpassa é uma concepção de ciência como instrumento de emancipação da humanidade. A ciência como via de superação da doença. A descoberta e o desenvolvimento tecnológico, como modo de elevação do bem estar comum. Segundo alguns (como Gerald Holton em “A Cultura Científica e os seus Inimigos, o legado de Einstein”, publicado pela Gradiva na colecção Ciência Aberta) as políticas concretas que tal documento apontou, terão estado na origem da liderança dos EUA em muitos ramos das ciências fundamentais, durante as décadas seguintes (e ainda hoje).

Ora na minha opinião este optimismo “pós-iluminista moderno” (como o designa Holton na obra acima citada), que ao longo da segunda metade do século XX foi sofrendo duros golpes e hoje se encontra de rastos, foi vítima de um dos mais perniciosos embustes que ainda hoje faz lei: a ideia de que a ciência é algo de etéreo, com vida e condição próprias, acima (ou além) das condições sociais e políticas específicas de um determinado tempo histórico.

De facto, esta concepção ascética de ciência fez escola, empurrada pelos teóricos do neo-liberalismo ou simplesmente pela grosseira ignorância dos seus opinion makers. Os próprios cientistas (de modo muito mais elaborado) ainda hoje a veiculam, havendo correntes (principalmente na áreas das ciências fundamentais) que advogam a ideia de que o avanço científico não compreende nenhuma componente de construção ou invenção, mas que todas as coisas simplesmente lá estão, e que o processo de as descobrir e utilizar corresponde a isso mesmo, ou seja, a um processo de revelação de algo exterior ao Homem, ao qual se ascende por via do exercício intelectual, preferencialmente de natureza privada, resguardado da influência, julgar-se-ia quase maligna, do mundo exterior.

A expressão mediatizada deste modo de ver sedimentou no imaginário colectivo, na ideia do cientista “génio louco”, sempre de cabeça no ar, alheado da realidade mundana do dia-a-dia. Um tipo inteligente mas ingénuo, sempre pronto a ser raptado pelos “maus da fita” que se querem apoderar das suas descobertas, que ele cientista, despreocupadamente descobriu, sem suspeitar - o grande distraído! – das consequências do seu trabalho para a vida das pessoas.

Esta visão do trabalhador científico cresceu e instalou-se a par de dois aspectos fundamentais, que revelam o carácter nada inocente deste modo de pensar, e denunciam verdadeiramente a quem ele aproveita:

- Primeiro: a crescente especialização do trabalho científico. Cada vez mais o trabalho dos cientistas (em particular nas grandes empresas privadas) é altamente especializado, servindo estes, enquanto mão de obra, para o desempenho de funções delicadas e altamente exigentes sem saberem (sem lhes ser dado sequer o direito de questionar) o fim último para o qual concorre o seu desempenho.

- Segundo: a ideia que consiste em transformar a ciência no bode expiatório dos insucessos, e até dos crimes, do neo-liberalismo.

Dirão os mais cépticos que o segundo ponto é um exagero, que ninguém culpa a ciência pelas guerras e pela fome do mundo. Mas de facto, na exploração demagógica da miséria alheia (com causas discutíveis mas seguramente enraizadas nas opções históricas e políticas que condicionaram determinadas evoluções sociais) há quem vá ensaiando este discurso. Veja-se a importante personalidade do congresso dos EUA (George E. Brown Jr.) citada por G. Holton no livro já referido: «A liderança mundial em ciência e tecnologia não se traduziu numa liderança em saúde infantil, esperança de vida, níveis de literacia, igualdade de oportunidades, produtividade dos trabalhadores ou eficiência na gestão de recursos. Nem evitou sistemas de educação falhados, cidades decadentes, degradação do ambiente, preços incomportáveis na saúde e a maior dívida nacional na história» (Gerald Holton: “A Cultura Científica e os seus Inimigos – o legado de Einstein”, pág. 18). Veja-se como são largas as costas da ciência, perguntem-se a quem é que este discurso aproveita...

De facto a ciência não tem nada de etéreo e corresponde, como a generalidade das actividades humanas, à resultante das tensões políticas, sociais e culturais de um determinado tempo histórico.

O ponto fundamental deste modesto contributo é, para além de lançar a discussão sobre esta temática, o de que culturalmente a desmistificação deste facto, só por si, representa um avanço para o aprofundamento das formas de participação democrática. É necessário mundanizar a ciência, fazer com que os cidadãos se munam da capacidade de falar e discutir sobre ciência no seu quotidiano, como o fazem sobre literatura, história, arte ou cinema (já para não falar na horrorosa astrologia!).

O papel que os cientistas têm (ou não têm?) na popularização da curiosidade e do conhecimento científicos em Portugal, a importância que a divulgação e a simplificação de conceitos e linguagens joga em tal contexto, são pontos (posts!) prometidos para futuras ocasiões.

FMR

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