Em consonância com a conhecida expressão inglesa, no amor e na guerra vale tudo e, sobretudo, quando se trata de guerra
de classes. E é disso que se trata na crise em curso, uma guerra de classes de grande envergadura. Em Portugal neste momento
esta guerra tem várias frentes.
Todas possuem importância na
ofensiva do capital e dos seus gestores políticos neoliberais e todas
têm importância para a
defesa dos direitos da população trabalhadora pelos sindicatos. Contudo,
está em curso uma batalha específica que pode determinar
o curso da guerra – o conflito em torno da flexibilização do trabalho
portuário e a greve dos estivadores.
O governo e o patronato estão a jogar com a ignorância e a indiferença do público para efectuar grandes transformações na
operação dos portos mas, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de
Portugal, uma associação que beneficia de uma sindicalização de quase 100% nos portos incluídos no seu âmbito, encontraram
um obstáculo aos seus planos.
Este sindicato está convicto de que o Acordo para o Mercado de Trabalho Portuário celebrado pelas Associações dos Operadores,
a UGT e a Federação
Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores Portuários, bem como a legislação subsequente produzida pelo governo,
visam a desregulação de normas estabelecidas para o seu trabalho e o funcionamento dos portos, um esvaziamento dos legítimos
direitos conquistados pelos trabalhadores portuários e uma provável precariedade e redução do emprego dos trabalhadores
cobertos pela contratação colectiva.
O governo e o patronato argumentam que a flexibilização do trabalho portuário é necessária para aumentar a competitividade
dos portos portugueses, e vários grupos económicos fortes (nomeadamente o Mota Engil) estão posicionados para retirar os
benefícios das transformações conseguidas, de forma a ampliar o seu espaço de intervenção nos portos.
É verdade que a competitividade dos portos portugueses poderia ser melhorada. Mas o governo e os empregadores põem o ónus
da falta de
competitividade sobre as normas de trabalho portuário. Todavia, será que o problema essencial da competitividade
dos portos portugueses incide no custo do trabalho resultante da sua regulação?
Analisando dados comparados relativos à competitividade, destacam-se como mais relevantes os dados referentes aos custos
comparados da exportação e importação de um contentor. De facto, em termos dos custos totais, Portugal está relativamente bem
posicionado nos rankings calculados pelo Banco Mundial, encontrando-se em terceiro lugar em relação à exportação (atrás de
Singapura e da Finlândia) e em sexto lugar em relação à importação (atrás de Singapura, da Finlândia, da Noruega, da Suécia
e da Dinamarca). Em primeiro lugar, deveremos registar destes rankings a observação de que a competitividade não é,
necessariamente, um resultado simples do grau de regulação do trabalho portuário e
do custo do trabalho, sendo que os portos
dos países escandinavos, com os seus fortes sistemas de relações laborais, se apresentam entre os mais competitivos.
Em segundo lugar, a contribuição do custo da movimentação da carga nos portos tem de ser relativizada. Efectivamente, Portugal
não está muito competitivo neste indicador mas, mais uma vez, a superior competitividade dos países escandinavos em termos
destes custos demonstra que o custo do trabalho não é, necessariamente, um factor que impede a competitividade.
Factores como a gestão, a tecnologia e a logística entrarão,
realmente, com mais peso neste cálculo. Sim, é possível aumentar
a competitividade neste campo à custa da retribuição pelo trabalho
portuário à moda chinesa - como fizeram os gregos no porto de
Pireus, entregando uma parte da zona portuária à administração de uma
empresa chinesa. Mas será uma solução
inteligente? As
condições de trabalho dos trabalhadores gregos sob gestão chinesa são
muitíssimo precárias e há uma discrepância significativa
no seu nível salarial em relação aos outros portos gregos, sendo essa a
razão pela qual a gestão chinesa atingiu a sua melhoria
de competitividade. Em terceiro lugar, é outra vez evidente, pelo
posicionamento medíocre de Portugal em relação ao custo dos
aspectos administrativos e burocráticos envolvidos na movimentação da
carga, que o governo poderia fazer muito, neste domínio,
para melhorar a competitividade dos portos portugueses.
Então, por que é que governo e o patronato canalizam os seus esforços para a flexibilização do trabalho portuário?
A resposta tem a ver com a ofensiva geral do capital, do governo e da troika, aproveitando a crise, contra o que resta de
um modelo de relações laborais baseado na regulação do mercado
do trabalho através da contratação colectiva. Também tem a ver
com os interesses dos grupos económicos que estão prontos para se aproveitar de novas áreas de negócio portuário, abertas pela
transformação das relações laborais estabelecidas.
Quanto ao custo do trabalho portuário, os estivadores grevistas estão
a ser vítimas de uma campanha eficaz de desinformação
(quiçá intoxicação!), na comunicação social, que procura isolar os
estivadores e culpabilizá-los pelos direitos que têm
conquistado desde a década de 1990, na sequência das mudanças
tecnológicas nos portos. Nesta campanha várias celebridades
mediáticas têm vindo a prestar um serviço ao governo e ao patronato. A
mentira mais comum é de um sadismo terrível: a afirmação
de que os estivadores chegam a ganhar 5.000€ mensais! Quem poderia sentir
simpatia ou solidariedade por trabalhadores braçais que
ganham mais do que
um professor catedrático?
A ideia transmitida é a de que estes trabalhadores são uns privilegiados que fazem greves fortuitas e que estarão a explorar os…
empregadores!! Num programa recente no canal televisivo SIC Notícias, Sónia Almeida, mulher de um estivador, fez a pergunta
relevante: "Em que é que estas figuras baseiam as suas afirmações difamatórias dos estivadores?". Em primeiro lugar,
relativamente à afirmação dos 5.000€, trata-se (infelizmente) de uma ficção inventada. Não é verosímil que as categorias de
estivadores em greve possam chegar a salários mensais de 5.000€ com base em qualquer regime de trabalho normal, desde logo
porque uma percentagem importante dos estivadores corresponde a trabalhadores eventuais que trabalham em função dos pedidos
das empresas, podendo ser trabalhadores em situação precária ou temporária. Olhando para a tabela salarial actualmente em
vigor e para o contrato colectivo, consegue-se fazer alguns cálculos simples: para ganhar 5.000€ por mês um trabalhador da
mais alta categoria (superintendente) teria de trabalhar 16 horas por dia, durante 30 dias seguidos, ou seja, o mês inteiro!
No entanto, os estivadores nas categorias de base na escala, ao
trabalhar 16 horas por dia (um turno normal acrescido de um turno
de horas extraordinárias), chegarão a ganhar, aproximadamente, entre
3.030€ e 4.450€. Se fosse possível trabalhar tanto, o trabalhador
mereceria não só os 5.000€ mas, ainda, o bónus de um Porsche, tal e qual o
terceiro carro do seu patrão, e, por último, um caixão de
ouro no fim do ano! Fala-se, assim, quer de um regime de trabalho a
tempo inteiro quer de horas extraordinárias impossíveis de
realizar. Portanto, aqueles, como Ângelo Correia, que vieram à televisão
fazer afirmações deste tipo, têm a
responsabilidade de
demonstrar como tal seria possível, sobretudo porque os documentos do
sindicato em causa (que tenho à minha frente) mostram que
o salário mensal dos trabalhadores é de 1.623,98€ na Figueira da Foz,
1.538,96€ em Setúbal, 1.787,28€ em Lisboa e 2.183,48€ em Sines.
O salário mensal mais alto detectado entre os sindicalizados,
actualmente, é o de 2.708,27€, correspondendo a um cargo de coordenador
em Setúbal. Ao contrário do que foi afirmado, televisivamente, por
Ângelo Correia, a nova legislação não visa uma redistribuição "mais justa" das horas extraordinárias de um conjunto de trabalhadores,
supostamente privilegiados mas, antes, a redistribuição
dessas horas a novas categorias de trabalhadores nas áreas de logística,
os quais terão contratos precários de empresas de cedência
de trabalho portuário, não tendo os mesmos direitos em relação aos
estivadores
sindicalizados. É assim que a legislação governamental
visa precarizar o trabalho portuário em geral, tendo, por efeito de
contágio, um impacto sobre as relações laborais dos trabalhadores
sindicalizados. É, por isso, que os estivadores em greve prevêem
despedimentos de uma grande parte dos trabalhadores eventuais
(ou seja, os trabalhadores alocados, diariamente, pelas empresas de
prestação do trabalho portuário aos armadores). Se permitirmos
que isso aconteça nos portos, por contágio outros ramos de actividade
sofrerão o efeito deste modelo de flexibilização das relações
de trabalho.
Por outro lado, qual é o problema se um trabalhador ganhar bem, pelo
serviço prestado, de trabalho duro, para uma empresa que
faz lucro? É um pecado? A pobreza do proletariado do século XIX (ou em
Portugal antes do 25 de Abril) será uma virtude melhor, uma
meta para as relações laborais de
hoje? Será que estas celebridades pensam que é preciso ser pobre para
ser um operário honesto?
Que argumentação perversa e mentalidade reaccionária! E qual é o
problema se um trabalhador ganhar devidamente, devido à boa
capacidade negocial do seu sindicato na contratação colectiva, por a sua
alta produtividade permitir altos rendimentos ao seu
empregador? Não é isso, supostamente, a virtude da função da contratação
colectiva em democracia? Ou terá a burguesia perdido
o apreço e a tolerância pela democracia e a negociação laboral?
Vários sinais deveriam ter acordado o movimento sindical quanto à seriedade da situação mas, lamentavelmente, ainda há pouco
eco do conflito no debate sindical:
1) Na última semana, várias vozes do patronato pressionaram o
Governo, frontalmente, reivindicando o recurso à requisição civil.
Aparentemente, o governo vai tentar evitar o risco de
um confronto aberto, optando, para obter o mesmo efeito, pela alteração
dos
critérios dos serviços mínimos, redefinindo-os. Em vez de incidirem
apenas no tratamento de produtos perecíveis e de primeira
necessidade, os grevistas terão ainda o dever de tratar de tudo o que é
indispensável à economia nacional. Como tudo o que tem
a ver com a exportação pode ser invocado como indispensável à economia
nacional, nesta crise, o governo vai, efectivamente, retirar
força ao direito à greve. Se isso acontecer todo o movimento sindical
sofrerá as repercussões desta precedência.
2) Um representante do patronato veio várias vezes a público acusar, de
forma policial, o PCP e a CGTP (como se fossem uma entidade
única anti-nacional) de estar atrás da greve. Trata-se de uma táctica
McCarthyista da mais elementar. Toda a gente sabe que o
sindicato em questão é independente, “livre e
democrático”, como rezam os seus estatutos, e que o PCP não tem
influência na sua
direcção. Algo diferente é que o PCP apoie, de alguma forma, a luta
destes trabalhadores, o que os estivadores só poderão agradecer,
como reconhecerão o apoio de todas as forças políticas que sustentem a
justiça desta luta. E se há alguma convergência entre a greve
e os objectivos políticos do PCP e da CGTP, isto é indicativo da
situação política no país e não dos objectivos dos estivadores.
Mas esse apoio valioso do PCP, e de outras forças da esquerda, de
maneira nenhuma significa que se trata de uma greve fomentada
por eles. Esta greve é uma resposta legítima de uma classe de
trabalhadores que está a sofrer um ataque às suas condições de
trabalho e de emprego.
Trata-se de um conflito laboral importante e legítimo – que
entretanto envolve alguma divisão sindical. O acordo sobre o
trabalho
portuário que abriu a porta à nova legislação foi assinado pela UGT e a
Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores
Portuários. Embora este sindicato represente, em maioria, os
trabalhadores do porto de Leixões, no conjunto de portos portugueses é
minoritário. Quanto à UGT, a assinatura deste acordo é, infelizmente,
consistente com a sua política de concertação a todo o custo,
sendo muito compatível com a sua posição em relação à assinatura do "Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego".
Evidentemente, há diversas estratégias sindicais para lidar com os
problemas actuais da economia e do emprego. Ora, sem querer
entrar no conflito ideológico que divide, disfuncionalmente, o
sindicalismo português, é preciso, contudo, constatar que a greve
dos estivadores é um conflito exemplar em resposta às reivindicações
patronais para a flexibilização e desregulação das
relações
laborais em torno da competitividade. As repercussões desta situação
podem – e vão ser de certeza - sentidas muito além dos portos.
A campanha dos empregadores procura isolar os estivadores em greve da
mesma maneira (embora ainda mais radicalmente) que, no geral,
se procura dividir os trabalhadores do sectores público e privado no
contexto das políticas de austeridade. Também cada vez mais, nos
ruídos produzidos na internet e na "opinião pública", outros
trabalhadores do sector dos transportes em conflito, tais como
maquinistas da CP, trabalhadores da Soflusa e da Transtejo, etc., estão a
ser tratados em conjunto, como se fossem uma aristocracia de
trabalho que tem uma vida privilegiada, e associam-se os conflitos,
deslegitimando as reivindicações destes trabalhadores.
Os estivadores têm tido evidentes dificuldades em transmitir a sua
mensagem. Embora se possa
entender que entre sindicalistas
da UGT haja um incómodo em relação ao conflito, devido à assinatura,
pela UGT, do Acordo sobre o Mercado de Trabalho Portuário,
surpreende a falta de empenho do resto do movimento sindical em torno da
situação e, sobretudo, a falta de discussão do conflito.
Como é que vão reagir se houver uma repressão dos estivadores em greve?
Em conclusão, sugiro uma reflexão sobre a história recente do
movimento sindical internacional. Pensemos no sindicalismo
americano, por exemplo, e o efeito que em 1981 a repressão, por Reagan,
da greve dos controladores aéreos de PATCO, uma profissão
reduzida de trabalhadores altamente qualificados e "privilegiados", teve
no declínio do poder negocial dos sindicatos norte-americanos,
em geral, e na sindicalização. Consideremos o sindicalismo britânico e o
efeito que a derrota em 1984 dos mineiros, outros "privilegiados", teve nos recuos dos direitos dos trabalhadores desse
país. Lembremos, então, o significado do lema sindical "solidarity forever". Não se trata, apenas, de um slogan do passado
histórico ou de uma ideia ideológica abstracta, mas de uma
necessidade sindical!
Não esqueçamos o que o governo e o patronato tão bem entendem (e aplicam, se deixarmos): "vale tudo no amor e na guerra"... de
classes!
Alan Stoleroff
26 de Outubro de 2012
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