quarta-feira, novembro 15, 2006

Comércio Justo e Consumo Responsável

Numa altura em que o movimento do Comércio Justo passa por uma fase de separação de águas, um conjunto de 40 associações - entre as quais a Via Campesina - reuníu-se em Barcelona para repensar estratégias.

Em Portugal a Cooperativa Mó de Vida já subscreveu o Manifesto saído da reunião e que aqui apresentamos.

MANIFESTO

Apresentado em Barcelona nas 4ª Jornadas de Comércio Justo e Consumo Responsável
13 de Maio de 2006

O Comércio Justo é um movimento social que, através de uma prática comercial, um trabalho de sensibilização e um trabalho de mobilização social aspira a transformar os actuais modelos de relações económicas e participar na construção de alternativas. Como movimento social, o comércio justo reflecte a diversidade existente na sociedade e tem muitas definições e interpretações, dependendo das organizações que as realizam.

Torna-se necessário clarificar as diferentes visões existentes. As organizações que formamos o Espaço por um Comércio Justo, pretendemos com este documento definir as nossas posições a respeito do Comércio Justo e a nossa luta pela transformação social. Apostamos numa formulação aberta que recolha os princípios básicos para trabalhar numa direcção comum e o nosso compromisso é cumprir estes princípios na maior medida possível.

O Comércio Internacional não é o motor do desenvolvimento

Entendemos o comércio mundial como um complemento do comércio local e não como um motor de desenvolvimento. O Comércio Justo luta para modificar as relações comerciais internacionais injustas. Opomos-nos à liberalização do comércio e denunciamos a política da OMC e outras instituições internacionais de impor a abertura dos mercados do Sul. Apoiamos nesse sentido as lutas que as organizações de camponeses mantêm na defesa dos seus cultivos e formas tradicionais de produção.

Um Comércio Justo transformador

O Comércio Justo é um processo de intercâmbio de produtos que, respeitando a Natureza, procura distribuir equitativamente os esforços e os benefícios entre os participantes. Embora um comércio absolutamente justo seja impossível no mundo em que vivemos. Mediante a transparência em toda a cadeia procuramos a possibilidade de que todos os actores, especialmente o consumidor, possam tomar as suas decisões responsavelmente. Neste sentido é imprescindível reforçar a transparência e a comunicação em todos os elementos da cadeia comercial, reforçando o princípio da confiança, básico nas nossas relações. Também é necessário manter uma vigilância perante o impacto das nossas actuações e não pressupor que as boas intenções têm por si só efeitos positivos.

Pensamos que o objectivo do Comércio Justo é, pelo menos, duplo: por um lado, criar actores críticos em toda a cadeia económica; por outro, desenvolver espaços de práticas alternativas que se articulem em redes locais e globais facilitando as condições para amplas mobilizações sociais. O objectivo do Comércio Justo não pode ser crescer quantitativamente para transferir mais recursos para o Sul, entre outras coisas, porque não vemos o Comércio Justo em estritos termos Norte-Sul, mas sim numa perspectiva global de mudança nos âmbitos da produção, do comércio e do consumo.

Apostamos na economia solidária, que acolhe uma pluralidade de estratégias e projectos diversos e em âmbitos muito diferentes: finanças alternativas, cooperativas de consumo, software livre, edições associativas, etc.

Opomos-nos à entrada das transnacionais no Comércio Justo e combatemos o seu papel no comércio, assim como as suas práticas. Apostamos, internamente, pelo funcionamento do modo mais participativo possível e pela cooperação e coordenação entre as diferentes organizações - frente à atitude de competição - dando prioridade ao trabalho com aquelas com as quais partilhamos a nossa visão do Comércio Justo.

Cada trabalhador que participa no Comércio Justo deve poder decidir livremente a sua vida económica e viver dignamente do seu trabalho, respeitando o equilíbrio ecológico.

Pela Soberania Alimentar

Apostamos na Soberania Alimentar, tanto no Sul como no Norte. Consideramo-la uma linha estratégica que dá coerência ao conjunto da nossa alternativa. Apostamos pela agro ecologia face à industrialização da agricultura, que serve para desviar os seus benefícios para as mega-empresas do Norte.

Fomentamos a participação prioritária das organizações do Sul, apoiando o seu fortalecimento e dando-lhes protagonismo na globalidade do processo, em vez de inumeráveis critérios. Defendemos a sua autogestão mantendo a propriedade e controlo dos meios de produção por parte das unidades produtivas organizadas igualitária e democraticamente.

Mantemos relações estáveis, onde o comércio é parte de uma relação global de cooperação e luta pelos mesmos objectivos. Trabalhamos com organizações que funcionem respeitando o meio ambiente conforme os princípios agro ecológicos, que preservem a sua cultura alimentar e favoreçam as produções e elaborações artesanais. Organizações que tenham por objectivo fortalecer o desenvolvimento local e a sua prioridade sejam os mercados locais. Não queremos aumentar a dependência do mercado internacional, “mesmo que justo”.

O movimento do Comércio Justo deve fortalecer aquelas organizações que dinamizam a luta pela Soberania Alimentar no seu país, que estejam comprometidas social e politicamente com os direitos dos trabalhadores e camponeses, com as lutas pela democracia e pela igualdade de género nas suas sociedades.

Uma relação de cooperação, mas não impositiva

A relação que estabelece o Comércio Justo através da importação de produtos é uma relação complexa, que não se pode simplificar com umas poucas normas. Apostamos em processos participativos de definição de critérios, que acompanhem a imprescindível transparência, face a modelos de certificação de produtos tipo FLO. Este selo reduz o comércio justo a algumas das características do produto, especialmente (ou quase exclusivamente) ao preço pago e à forma de financiamento. Deste modo dá-se o aval, a que multinacionais, e até o Banco Mundial, afirmem que fazem comércio justo nalguma parte da sua actividade quando o conjunto da sua actividade é o paradigma do comércio injusto que queremos combater.

Acreditamos que o comércio é um conjunto de processos e é na sua totalidade que se deverá procurar a equidade. Isto requer um esforço permanente de debate e informação do qual, de forma transparente, devem tornar-se participantes todos os elementos que colaboram na cadeia do Comércio Justo.

A possibilidade de acesso a fontes de financiamento, que algumas organizações de Comércio Justo dos países do chamados do Norte possuem, deve utilizar-se numa relação que dê poder e fortaleça todas as partes. Devemos evitar que os fluxos financeiros possam modificar as prioridades que as organizações do Sul democraticamente se atribuíram.

Devemos evitar transferir as necessidades dos mercados do Norte às produções do Sul, quando possam ir em detrimento das formas como, culturalmente, cada povo resolveu a sua harmonia com a natureza.

Recusamos importar aqueles produtos que já se produzem localmente com condições sociais e ecológicas equivalentes, visto que entendemos o Comercio Justo com princípios que devem conduzir as relações comerciais, dentro do Sul e dentro do Norte, e não apenas uma exigência do Norte em relação ao Sul. Naqueles produtos de Comércio Justo em que existam ingredientes significativos que se produzam no Norte, devem procurar-se as mesmas condições sociais e ecológicas que procuramos no Sul.

Se é certo que o trabalho de importação de produtos implica uma gestão centralizada, é importante que se promova o acesso de todas as organizações que o desejem à participação nas estruturas dedicadas a ditas tarefas, independentemente da dimensão ou dos recursos de ditas organizações.

A transformação dos produtos em beneficio do meio rural

A maior parte da transformação deveria fazer-se por organizações o mais próximas possíveis dos camponeses, das suas organizações e controlada por elas, dando maior valor acrescentado aos seus produtos, fortalecendo o meio rural, em vez das grandes empresas transformadoras e comercializadoras.

Quando tal não seja possível, devemos defender os mesmos critérios que no Sul, trabalhando com empresas do terceiro sector, cooperativas ou pequenas empresas que participem de uma agricultura e alimentação alternativa (artesãos, produção ecológica, zonas rurais deprimidas...). Em nenhum caso o Comércio Justo deve trabalhar com empresas multinacionais que estejam no centro do actual modelo injusto e insustentável.

Um trabalho indissoluvelmente ligado à sensibilização e à denúncia

O Comércio Justo é uma ferramenta para a nossa sensibilização e empenhamento como sujeitos consumidores, como pessoas críticas que praticam um consumo responsável. Trabalhamos por ser consumidores responsáveis, críticos e com consciência. Devemos gerar ferramentas de participação, fazendo que, como consumidores, sejamos sujeitos activos do movimento. Neste sentido trabalhamos pelo envolvimento de, e com, os movimentos sociais.

Realizamos uma sensibilização global e crítica, sem confundir a sensibilização com a promoção de produtos, e trabalhando por uma transformação dos valores. O consumidor tem que entender que o Comércio Justo não é um facto isolado, mas sim que se enquadra dentro de uma luta de transformação social.

Apostamos nas lojas de Comércio Justo como centros de actividade social, que realizam um trabalho de sensibilização, consciencialização e apoio à mobilização social. Dentro da linha de transparência que nos caracteriza, a informação sobre toda a cadeia comercial e a decomposição de preços deve chegar até ao consumidor final.

Rejeitamos a instrumentalização do Comércio Justo por parte das grandes empresas e as transnacionais, através da comercialização de produtos de Comércio Justo em grandes superfícies e grandes cadeias de comercialização como fórmula de marketing empresarial encobrindo que o conjunto da sua prática comercial é hoje um dos principais focos de injustiça no comércio.

Em qualquer caso, entendemos que o exercício da cidadania não se limita ao acto do consumo. A necessária atitude e coerência pessoais não podem substituir as nossas responsabilidades políticas, sociais e ecológicas.

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