terça-feira, outubro 17, 2006

Ser ou não ser fórum social...

Bom dia. O texto abaixo resulta do nosso debate a nível nacional sobre a nossa participação no FSP 2006, foi amplamente discutido pelo movimento Panteras Rosa nos últimos dias, e está a ser neste momento divulgado publicamente. Pode ser lido, no contexto em que foi originalmente publicado, em http://panterasrosa.blogspot.com/2006/10/ser-ou-no-ser-frum-social-portugus.html

Encaminho para conhecimento e polémica.

Pelas Panteras Rosa - Frente de Combate à Lesbigaytransfobia

Sérgio Vitorino
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*SER OU NÃO SER FÓRUM SOCIAL PORTUGUÊS...*
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*...eis uma boa questão!*

Está disponível em http://www.panterasrosa.com/html/flyers_FSP.html a colecção de cartazes - aparentemente incómodos - que as Panteras Rosa espalharam pelo centro da cidade de Almada e pelos espaços do Fórum Social Português 2006, que se realizou este fim de semana.
Durante o dia de sábado, grupo de pessoas que justificavam abusivamente a sua acção em nome da "organização" (da qual faziam parte entidades nossas parceiras que condenaram o acto de censura), arrancaram metodicamente os mesmos cartazes tanto de espaços do FSP como nas ruas de Almada, sem por isso terem conseguido torná-los invisíveis ou menos notados.
O Movimento Democrático de Mulheres, o primeiro a deitar as mãos à parede, foi o único a assumir o que estava a fazer, mas nem por isso explicou a sua atitude quando confrontado - aparentemente, vaga formulação, os nossos cartazes eram "insultuosos" para as mulheres?! Registe-se, porém, com surpresa e ironia, que, tal como nós, o MDM não deixa por mãos alheias o seu rumo e também valoriza a acção directa como uma forma vantajosa de intervenção. A malta encontra-se na campanha pelo sim no referendo do aborto.

Ouvimos todo o tipo de argumentação da parte de outras pessoas com cartão ou conversa de "organização" mas não soubémos, na verdade, de nenhuma outra entidade que assumisse o acto. Foi-nos dito que estávamos a promover-nos "à boleia dos outros" porque não tinhamos "aproveitado a oportunidade de termos oficialmente uma banca no Fórum". Que as paredes de Almada não eram nossas - como era o dito, "paredes brancas, povo silencioso"? Que o nosso movimento não estava inscrito no Fórum - assim o decidimos, mas nem por isso deixámos de participar enquanto colectivo ou de ser co-promotores de uma das iniciativas auto-organizadas - como se um formalismo burocrata justificasse uma censura (se é pelo dinheiro, a malta paga), e como se não pudessemos estar inscritos individualmente e, no entanto, agir e questionar. Ou fazer da rua a nossa "banca".

Como se explica o impacto exagerado que estes cartazes e a nossa acção directa tiveram em tantos participantes deste fórum? Como justificam as Panteras Rosa o grau de questionamento e provocação - não é ela uma forma de comunicação? - destes materiais relativamente ao próprio evento e ao papel dos movimentos sociais?
É que nesta visão democrática, questionar o fórum é ser-lhe hostil, fugir ao esquema de estar calado perante uma conferência de oradores e praticar formas imaginativas de intervenção como a acção directa é proibido.

Como se explica que um fórum que nasceu como processo aberto ao conjunto dos movimentos sociais se torne num evento cheio de pesos formais e pareça ter uma direcção política que até assume que determinados movimentos não podem exercer no mesmo a sua liberdade de expressão? Como se explica a degradação de um evento que perdeu em 3 anos a maioria dos colectivos e movimentos que nele participavam (incluíndo a maioria dos colectivos LGBT, que desta vez se absteve de estar, com poucas excepções) , que perdeu a sua auto-sustentabilidade financeira e a sua transparência organizativa, e que chega a 2006 como um 'flop' pouco participado, colonizado pelo aparelhismo partidário e no qual apenas restam alguns movimentos mais empenhados que - como nós - ainda vêm interesse na rara mas limitada oportunidade de poderem encontrar-se para debater a sua intervenção e procurar pontos de convergência?

Culpa nossa, e de todos os movimentos que deixaram de se envolver na organização do Fórum porque se sentiam desgastados e deslocados perante plenários intermináveis de disputa partidária estéril numa verdadeira guerra de posições à volta de cada iniciativa? Culpa de quem abandonou o esforço prático e político de construcção do evento? Também, mas não fundamentalmente, e não apreciamos especialmente os actos de contrição nem eles são particularmente úteis uni-direccionalmente ou sem alternativas novas que os complementem.

Em 2003, o movimento LGBT participou em peso no primeiro Fórum Social Português, evento em que se quebraram muitas das barreiras que existiam entre as associações lgbt e os restantes movimentos sociais - sindicatos, ambientalistas, associações de imigrantes, culturais, de mulheres, de deficientes, e muitas outras - que passaram em muitos casos a considerar a problemática lgbt nas suas intervenções específicas, e a contar com o movimento lgbt como parceiro. Para muit@s activistas lgbt, o fórum foi também uma oportunidade de abertura e ligação a outras causas e lutas enriquecedoras da sua intervenção e alargadoras da nossa consciência política. 2003 foi uma oportunidade rara para entendermos como se interligam e reforçam mutuamente as várias problemáticas e opressões, e compreender a base comum e sistémica das mesmas.
O fórum foi muito importante para os vários movimentos que nele se cruzaram, gerador de dinâmicas novas, parte das quais sobrevivem hoje graças à iniciativa individual de activistas e colectivos, ou mesmo por afinidade natural entre causas e movimentos que se deram a conhecer mutuamente. O fórum foi um pequeno vislumbre da força acrescida que os movimentos poderiam ter - muito mais do que apesar de tudo já vão tendo - para a transformação social em Portugal, se funcionassem com um mínimo de articulação entre si.

Mas nada de ilusões: no quadro da fraqueza do associativismo nacional, as dinâmicas positivas do evento em 2003 - e a própria realização do fórum - só foram permitidas por um equilíbrio relativo entre correntes partidárias que ali estavam presentes (PCP, BE, renovadores...), evitando conflitos de maior e dando espaço aos movimentos sociais para debaterem uma agenda de lutas plural e sem hierarquias que deu origem a convergências inéditas, como o envolvimento generalizado dos movimentos nas grandes manifestações contra a guerra ou, no nosso caso, as participações variadas (nomeadamente da CGTP) na marcha do orgulho desse mesmo ano e o apoio público do conjunto das associações LGBT à greve geral convocada pela central sindical, baseado numa profunda reflexão sobre a relação entre as discriminações no mundo do trabalho e a degradação geral das condições laborais.

Se a dinâmica de 2003 foi positiva - e não teria sido possível sem envolvimento partidário - o facto de um processo destinado ao reforço e florescimento dos movimentos sociais ser assente num equilíbrio partidário era já de si mau sinal, como se veio a comprovar: a realização do fórum em
2004 foi impedida por negociação entre forças partidárias, sendo o processo interrompido contra a vontade da maioria dos movimentos (de forma que só agora se volta a realizar um fórum e houve entretanto dois anos de vazio, àparte um discreto mini-evento em Évora em 2005), e assim se impôs uma visão do fórum social não como um processo de interligação permanente entre os diferentes movimentos sociais, feito da multiplicidade das várias agendas, mas sim como um evento anual que só tem valor nos 3 dias em que ocorre e em que as agendas servem uma visão hierarquizada das lutas (é fácil imaginar em que grau fica a importância de lutas como a lgbt ou a das mulheres).

A acrescer à tentativa predatória do PCP sobre o Fórum - um processo que na realidade pareceu não ter desejado, a não ser na forma arrumadinha de evento, ritual ocasional - há ainda um paternalismo comum nas forças partidárias no sentido de pensar o movimento social em Portugal como um deserto tal, que de alguma forma estas terão que se lhe substituir e dar-lhe rumo. Um ciclo vicioso: os movimentos são frágeis, mas a sua menorização, não-discursiva mas prática - reforça essa mesma fragilidade. Não, os activistas não se esgotam nos partidos. Não, nem tod@s são potenciais aderentes dos partidos. Não, não falta muita gente interessante a fazer trabalho valioso por movimento social apesar do contexto amorfista.

No entanto, ao contrário de outros movimentos que partilham connosco um grande descontentamento com o rumo do FSP, não vemos o problema do Fórum como uma disputa "dos maus dos partidos contra os bons dos movimentos", uma análise infantil e pouco útil que apaga o activismo de muit@s militantes partidári@s nos movimentos, ou como situação que se resolva proibindo a presença formal dos partidos políticos neste processo. Os partidos são organizações complexas e até diversas, como os movimentos. Há que distinguir atitudes, e não partidos. Há que distinguir partidos e movimentos mas é quanto ao papel de uns e outros. E são os movimentos, na sua autonomia e independência, para lá, não das ideias próprias, mas da filiação partidária (ou inexistência dela) de quem os constrói, quem tem que assumir o papel de dinamização do processo do FSP, e portanto a decisão colectiva sobre o seu rumo, a direcção de um processo sem direcções. Ora aqui está a chave da questão. O movimento social aprender a respirar sem máquina, assumir que respira, descobrir que outros também respiram, e ser deixado respirar.

Como foi bem afirmado na sessão auto-organizada que ajudámos a conceber, a verdade é que os próprios movimentos sociais em Portugal, na sua fraqueza, têm conseguido impulsionar mudanças profundas na sociedade portuguesa, mas parecem ter medo de assumir a sua real importância ou de priorizar um processo político como o que potencialmente teria um Fórum Social Português vivo. Falta de instrumentos, ou de ambição, ou medo de crescer, ou incapacidade de ver que isso não se faz sozinho.

O problema está nos partidos políticos - sem esquecer que parte da vida dos movimentos sociais se deve precisamente à intervenção honesta e não-predatória de muitos activistas partidários de todas as correntes à esquerda -, mas está igualmente em como se faz movimento social: legalistas, institucionalizados, formalistas, dependentes, hierarquizados, aparelhistas, burocratizados, com a mania das grandezas, com protagonismos e interesses pessoais à mistura, falhos de politização, de enquadramento geral das próprias causas, carentes de ideologia política (não confundir com
partidária) coerente com as lutas que assumimos, elitistas, assim vamos sendo.
E dizemos "vamos", porque não nos excluímos destas contradições nem somos um movimento unânime com uma coesão tal que nos permita estar imunes a esta mentalidade e às dificuldades em ultrapassá-la. O medo de ousar é regra, tal como a incapacidade de conceber a transversalidade das transformações sociais necessárias ao sucesso das causas que os próprios movimentos defendem. Muita inconsequência, portanto, tal como falta de eficácia e de capacidade de envolvimento de massas, mesmo da parte de activistas e movimentos sociais que se dedicam com muito valor e bons resultados às várias lutas.

Ninguém está imune ao conformismo à portuguesa, mas todos podemos pensá-lo e tentar mudar as regras formais e informais estabelecidas. As Panteras Rosa, nas suas limitações, tentam criticar, criticar-se, e construir novas formas de fazer intervenção política e movimento social. Ora, um processo como o FSP só valerá a pena se fôr um espaço e um processo dos movimentos, menos formal e mais aberto, menos coloquial e mais subersivo, menos quadrado e mais aberto à imaginação. Se proporcionar novas redes de activismos, transversais às temáticas e aos movimentos, e novos pólos de consciencialização e intervenção social. Se lhe estiver atribuída pelo menos parte da ambição de transformar as relações de forças que estruturam a sociedade e vencer o clássico défice de participação cidadã em Portugal.
Para resistir eficazmente - e simultaneamente em cada uma das frentes - à lógica imparável da globalização capitalista que hoje reforça - sem contestação à altura ou criação de alternativas credíveis - o conjunto dos problemas mundiais que os movimentos sociais tentam enfrentar isoladamente na caixinha de cada temática.

Um debate que temos mantido com os nossos parceiros no interior do próprio movimento LGBT, afirmando que a reivindicação por direitos iguais é necessária mas insuficiente num contexto de recuo generalizado dos direitos sociais e da cidadania: as Panteras Rosa não lutam por integrar os homossexuais na sociedade que existe, porque ela é estruturalmente segregadora. Queremos sim abalar os fundamentos de uma sociedade intrinsecamente heterossexista. Destruir as bases da discriminação, e isso não se faz lutando isoladamente contra a discriminação d@s LGBT ou pelos seus direitos, sem olhar para opressões e problemáticas que a montante e jusante se interligam com as discriminações de género ou pela orientação sexual. No fundo, a generalidade das outras temáticas assumidas no FSP.

Às portas de uma reunião de balanço do FSP 2006 [25 de Novembro, 14,30h, sede da CGTP, Lisboa], as Panteras Rosa aguardam com expectativa - e muito respeito pelos movimentos que temos por parceiros e comparecerão- uma argumentação convincente no sentido da nossa presença - será bem-vinda, mesmo quando nos exprimimos livremente? - e consubstanciam o seu balanço do evento numa pilha de cartazes arrancados às mãos de quem tão democraticamente os tentou apagar do Fórum Social - continuará a valer a pena?

Questão tão dramática quanto deve ser alargada a uma reflexão necessária sobre o próprio movimento internacional por uma globalização alternativa, o surgimento dos próprios Fóruns, o movimento que eles geraram em todo o mundo, o seu nascimento em Porto Alegre, as referências fortes que se perderam até aos nossos dias (PT, Lula...), em que uma parte substancial desse movimento existente à volta dos Fóruns e do enorme capital de esperança que provocou, se rendeu ao pragmatismo dos poderes e se instalou objectivamento do outro lado das políticas económicas, sociais, da guerra e da paz.

Por cá, o FSP está refém do controlo partidário do PCP, está dependente de estruturas de movimentos sociais frágeis e pouco dinâmicas, e está também órfão das referências de luta contra a globalização capitalista que alimentaram os primeiros fóruns.

Contra uma visão infantilizada e paternalista dos movimentos sociais, e também por uma auto-reflexão dos movimentos sobre as suas próprias limitações políticas e práticas, as Panteras Rosa estão disponíveis para pensar e participar em todas as iniciativas inter-movimentos que construam o fórum social quotidianamente como processo permanente. E também as que pretendam devolver aos movimentos sociais as dinâmicas e objectivos originais do FSP, com evento ou sem evento, no evento ou noutros eventos.

Consideramos que estas dinâmicas dependem exclusivamente do movimento social. Não dependem de nenhuma estrutura ou acontecimento semi-anual (FSP ou outra). Não dependem de nenhuma iniciativa mais ou menos financeiramente auto-sustentável, mas apenas da vontade e da prática quotidiana de nos procurarmos e trabalharmos em conjunto. Vontade para a qual a "estrutura"
FSP está apenas como um dos espaços possíveis de exercício. Saiba a mesma estrutura continuar a sê-lo, porque outro objectivo não deveria ter, e sem ele perderá sentido. Saibamos nós, modestos activistas de modestos movimentos sociais, ultrapassarmo-nos.

Assim ruge a pantera sobre o fim de semana que passou. Desabe agora sobre o nosso rugido a vossa indignação. Ou não?

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