terça-feira, maio 24, 2005

O défice e a tanga

O relatório do grupo de trabalho liderado pelo governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, dificilmente poderia ter sido divulgado em ocasião mais oportuna: a conquista do título de campeão nacional pelo Benfica, ao fim de onze anos. E o pacotão (mais um!) de medidas que o governo se prepara para divulgar apanha a nação benfiquista em plena euforia, a sonhar com a “dobradinha” anunciada para o Jamor, no próximo domingo. Não é ainda a retoma glosada por alguns humoristas, mas lá que dá jeito, dá… a menos que os “verdes” de Setúbal resolvam fazer Taça!

Encenações à parte, o défice público em 2005 ultrapassará 6% do PIB, rondando uns astronómicos de 10 mil milhões €, 80% acima do valor previsto em finais de 2004. No debate de ontem à noite, promovido pela televisão pública, Bagão Félix procurou justificar este desvio brutal com a queda de receitas previstas no Orçamento: os dividendos da GALP (548 milhões), a venda de património (500 milhões), a transferência do fundo de pensões da Caixa Geral de Depósitos para a Caixa Geral de Aposentações (422 milhões) e a venda de concessões (500 milhões), num total de 1970 milhões €. Mas os negócios da GALP e da venda de património foram "chumbados" pela própria Comissão Europeia e as verbas do fundo de pensões foram todas usadas para em 2004.

Mais do que sacudir a água do capote ou entrar num pingue-pongue de culpas entre PS, PSD e CDS, registe-se o consenso quase absoluto sobre as soluções a aplicar num painel onde estavam presentes, além de Bagão, os ex-ministros das Finanças Pina Moura e Eduardo Catroga: emagrecer o Estado e as suas funções sociais básicas – Saúde, Educação, segurança social; aumento do IVA e dos impostos indirectos, os mais cegos e injustos; continuação (pelo menos em termos reais) do congelamento salarial que dura há três anos na função pública e acaba por servir de referência ao patronato, quando o Código do Trabalho conduziu ao bloqueio da contratação colectiva.

Perante este consenso da ortodoxia neoliberal, até parece que a democracia se esgota no “bloco central” de interesses sentado à mesa do “Prós e Contras” – curiosamente, o mesmo bloco central sentado à mesa do orçamento há mais de 30 anos e responsável pelo caos a que chegámos. Assim como “há vida para além do défice”, há outras opiniões representadas no parlamento para além do “triângulo das Bermudas” PS-PSD-CDS, por onde se têm esfumado milhares de milhões de euros de fundos comunitários, em escândalos cuja ponta do iceberg só às vezes chega à opinião pública – como no recente caso Portucale, a que ouvi chamar com alguma graça “a vingança dos chaparros”. Pergunto-me como pode a televisão pública realizar um debate desta envergadura sem convidar Octávio Teixeira e Francisco Louçã, só para citar dois especialistas.

Para perceber como e porque aqui chegámos e avançar pistas para ultrapassar a crise das finanças públicas, é preciso pôr em causa o “discurso da tanga”, invertendo o rumo seguido nos últimos três anos e que mergulhou o país na maior recessão das últimas décadas. Em nome da obediência cega ao PEC que Romano Prodi classificou de “estúpido” e a França e a Alemanha mandaram às malvas, o governo de direita aumentou o IVA de 17% para 19%, apertou o cinto aos mais sacrificados e recorreu a receitas extraordinárias que, além de mistificarem o défice, se traduziram em negociatas como a da Falagueira (a favor do “amigo” Pereira Coutinho) e a entrega ao Citigroup das dívidas ao fisco e à segurança social. Fica a pergunta: se o governador do Banco de Portugal sempre avalizou todas e cada uma destas medidas, com os resultados que estão à vista e dispensam comentários, que espera o Dr. Vítor Constâncio para apresentar a sua demissão, se ninguém tiver a coragem de o demitir?

Amanhã Sócrates quebra um silêncio olímpico. E há um caminho alternativo ao neoliberalismo para combater o défice social acumulado e criar emprego. É possível reduzir muita despesa improdutiva, partindo para a elaboração de um orçamento de base zero, eliminando privilégios de clientelas de diversas cores: só em vencimentos de administradores empresas municipais que fazem exactamente o mesmo que compete às autarquias são várias centenas de milhões de euros por ano. Mas há que actuar sobretudo do lado da receita: acabar com o sigilo bancário que fomenta a fraude fiscal e pôr fim ao off-shore da Madeira, por onde a banca foge legalmente aos impostos e se lavam capitais das mais diversas proveniências…

Sócrates tem amanhã a primeira prova de fogo: veremos até que ponto será capaz de pôr o dedo na ferida ou se a “tanga” do défice continua.

Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax – 24/05/2005

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