Na sua acção para assegurarem a sua hegemonia a nível dos mercados - e das ideologias - as grandes empresas internacionais procuram apropriar-se de conceitos que, à partida, lhes são exteriores, senão mesmo nascidos da oposição à sua prática.
O Comércio Justo (CJ) é um desses conceitos e o mercado do café um caso prático desta apropriação.
Um sector em crise, mas não para todos
O sector do café é apresentado como estando em crise vai para 30 anos. Cerca de 25 milhões de pessoas em 70 "países em desenvolvimento" dependem da produção do café para um mercado consumidor avaliado em 25 mil milhões de euros por ano.
Desde os princípios da década de 70 que os preços no produtor têm conhecido uma baixa contínua que atingiram os seus mínimos em 2002. A causa imediata desta deterioração tem sido apontada como o excesso de produção.
Mas nem todos perdem, nem todos os preços baixam. Num interessante estudo realizado por um especialista do Banco Mundial[1] constata-se que «desde a década de 70 que os preços dos produtos primários têm caído no mercado internacional. Contudo, durante o mesmo período, os preços no consumidor nos países industrializados[2] subiram. Por exemplo, entre 1975 e 1993 o café baixou em 18% no mercado mundial mas aumentou em 240% para os consumidores nos EUA.»
Esta divergência entre os preços no produtor e os preços no consumidor «tem aumentado radicalmente» aparecendo «como, em grande parte, causada pelo comportamento das companhias comerciais internacionais.»
O impacto desta crescente divergência nos preços «pode ter custado aos países exportadores mais de 100 mil milhões de dólares norte-americanos por ano porque limitaram a expansão da procura final por esses produtos nos maiores mercados consumidores.»
Reconhecendo que «estudos adicionais são necessários para identificar em que etapa do processo intermediário se realizam os lucros mais elevados: grossista ou retalhista», sendo que «a resposta variará provavelmente de país para país e de produto para produto», o estudo conclui pela legitimidade em afirmar que «a suspeita de que estas companhias usam a sua posição dominante para controlar os preços do mercado é reforçada pela crónica ausência de informação sobre as suas actividades.»
Café com sabor a “justo”
Ora, de acordo com notícias na imprensa internacional de Setembro de 2004, algumas das maiores empresas de comércio de café a nível mundial anunciaram a adopção de um Código para melhorar as condições de vida dos trabalhadores e cultivadores e as normas ambientais nos países produtores. Entre estas companhias estão a Nestlé, a Tchibo, a Sara Lee, a Kraft e a associação dos industriais de café da Alemanha, a DKV.
Intitulado "Código Comum para a Comunidade do Café", propõe-se ajudar os pequenos produtores, criando um mercado para o café que foi cultivado sem recorrer a pesticidas proibidos ou a trabalho infantil, escravo ou forçado, em locais onde a actividade sindical é autorizada, as condições de trabalho são justas e os produtores estão autorizados a vender livremente a sua colheita. O café produzido nestas condições será certificado sob este Código.
Tentam assim responder às pressões dos consumidores, dos retalhistas e às denúncias de ONG e grupos ecologistas de que estas empresas exploram os baixos preços e as más condições de trabalho num mercado mundial saturado de café.
As companhias signatárias, porém, não se comprometem a comprar café certificado. Em vez disso, a indústria «intensificará as relações comerciais com os produtores de boa qualidade» e «providenciará a um preço diferencial pelo café de alta qualidade».
O Código será reforçado por auditorias independentes e será avaliado regularmente. De acordo com as fontes citadas pela imprensa internacional, representa a tentativa mais ambiciosa de erigir normas numa indústria severamente afectada pela sobre-produção e a queda dos preços. É também uma das mais vastas iniciativas levadas a cabo por uma indústria. O envolvimento de grandes companhias representa uma ruptura com os pequenos esquemas do passado e os analistas prevêem que as pressões dos observadores aumentará as possibilidades da sua implantação plena. O Código será também subscrito por ONG, entre as quais a Oxfam International e a Greenpeace, e federações sindicais onde se inclui a dos trabalhadores da indústria do café. Se totalmente implantado, estima-se que o Código cobrirá 80% do mercado mundial do café.
A adopção do Código traz alguma da força moral do movimento do Comércio Justo ao “mainstream”. Embora o Código ajude a criar alguma justiça no comércio não é CJ. Ajuda o rendimento dos produtores mas não responde à queda de longo prazo nos preços e ao excesso de produção. Também evita qualquer menção aos arbustos de café geneticamente modificados, desperdiçando uma excelente oportunidade para enfrentar a questão.
[1] Morisset, Jacques, Unfair trade? Empirical evidence in world commodity markets over the past 25 years, Abril de 1997.
[2] Os países industrializados abrangidos neste estudo foram a Alemanha, o Canadá, os EUA, a França, a Itália e o Japão.
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