segunda-feira, agosto 30, 2004

Pacto de regime ou o fim de uma época?

“As negociações entre o Governo, a maioria parlamentar e a oposição para a concretização de um pacto de regime na Justiça ainda não arrancaram mas existe já uma sintonia entre PS e PSD sobre muitas das matérias que deverão ser alvo daquele acordo.”

Inês David Bastos e Joana Horta, “PSD e PS sintonizados em relação ao pacto de regime” em Diário de Notícias, 2004-08-26

No início dos anos oitenta, um sindicalista, acabado de chegar de umas férias em La Havana – que adorou e vivamente recomendou –, pedia-me para estar calado.
Olhando para trás, imagino-me no futuro, a contar aos meus filhos adultos como era o regime acabado de cair. Será assim que começarei a história.
Na banca nacionalizada em que trabalhava, já nessa altura à espera da privatização, os dirigentes – todos de esquerda, claro – rivalizavam e aliavam-se entre si para encontrarem a melhor posição para participar, no presente ou no futuro, na distribuição de benesses e alcavalas. Uma das condições óbvias era a de colaborarem com os partidos do poder, os partidos que mais tarde entraram numa lógica de rotativismo clientelar ou corporativo ou caciqueiro. Ao sindicalista, cioso dos seus pregaminhos, restava – imagino eu – resistir à degradação do ambiente, já nos anos oitenta se podia sentir, como um fado. Defender as nacionalizações poderia ser o seu mote, isto é, esconder as incompetências mas também as trafulhices, mesmo dos dirigentes e mesmo dos (ainda candidatos a?) partidários do PS e do PSD.
No tempo da evidente decadência esclerosada do regime fala-se da ausência de política, da corrupção e da impunidade. Não foram os partidos que orientaram a sociedade para a modernização, foram os partidários que negociaram entre si os benefícios que poderiam tirar da necessidade de implantação partidária na sociedade, em concorrência mas principalmente em conjunto. Assim se foram construindo teias cada vez mais densas de ofertas de financiamento ilícito a partir dos postos de influência pública, de que os angariadores eram compensados em bens próprios e impunidade geral.
Nalguns casos verificou-se mesmo existirem regimes de monopólio, partilhado por alianças principalmente entre “partidários” de partidos centrais, sempre no poder, uma vez um outra vez outro. Chamava-se a isto estabilidade.
Inquietos ficaram os mandantes quando o orçamento deixou de aguentar tamanha erosão e tantos areeiros. Foram-se desculpando com a crise económica global, mas de tão fixados no vil metal não quiserem (nem poderam) dar atenção à moral, à justiça, à desigualdade social, nem às aspirações culturais e educativas de um povo resignado por três décadas de crescimento económico e atado de pés e mãos a silêncios comprometidos. Os ancestrais, os obscurantistas e os democráticos. Não compreenderam como é que o segredo de justiça que lhes iria dar as dores de cabeça finais.
No futebol, depois de muitos anos de suspeitas de coisas feias na Federação, lá se reorganizaram e começaram até a pagar alguns impostos, e tudo sossegou. Mas a justiça, apesar da sua independência da política estar garantida por lei – ou será por “sugestão” do Estado? – estava destinada a servir de elo fraco do regime. Vá lá agente compreender os desígnios da História.
Quando deram por ela, os governantes à vez decidiram – finalmente – celebrar um pacto de regime para anular o poder de destruição dos disfuncionamentos judiciários. Simplesmente, certamente por alguma falha na gestão da imagem, decidiram celebrá-lo ao mesmo tempo que num dos partidos signatários se ensaiava uma campanha para escolha do lider, o que revelou a todos os portugueses como as decisões políticas mais importantes se fazem entre os angariadores de recursos para os partidos. Sendo uma garantia de estabilidade, precisamente por ser antecipada relativamente aos morosos processos democráticos, não se compreende como os seus resultados acabaram por ser desastrosos... Terá sido por falta de verbas?

António Pedro Dores

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