A indigitação de Durão Barroso como provável futuro presidente da Comissão Europeia caiu como uma bomba, num país aparentemente alheado da política e concentrado nas peripécias do Euro 2004 – como, aliás, voltará a acontecer a partir de amanhã, se a selecção for apurada para a final. A vida tem destas coisas, mesmo para quem não quer nada com a política: ela entra-nos pela casa dentro, ou melhor, sai pela televisão fora sem pedir licença; no fundo, comanda a nossa vida mesmo sem darmos por isso, nos actos mais banais, no jantar de grãos, de caviar ou da fome por que passam mais de 200 mil portugueses e vários biliões de pessoas por este mundo fora… Cá por mim, sempre preferi meter-me com a política como sujeito activo do que esperar que ela se metesse comigo quando menos esperava, de cerveja na mão, à beira de mais uma jornada do Euro 2004.
Passado o efeito de choque, comecei a torcer o nariz ao coro de elogios ao ‘perfil de estadista’ do nosso futuro ex-primeiro-ministro e às soluções instantâneas (tipo 1, 2, 3…) para a sucessão no cargo, com ministros já em carteira. E tornou-se óbvio um cenário pré-fabricado, em que nada tinha sido deixado ao acaso. Não é verdade que Durão Barroso continuou a falar das hipóteses da candidatura de António Vitorino, mesmo depois das eleições europeias terem confirmado a maioria conservadora do PPE em Estrasburgo? Não é que o homem afirmou, quando surgiram os primeiros rumores, que não era sequer candidato ao cargo de presidente da Comissão Europeia? Mas ninguém se pode espantar com uma estratégia assente na mentira, depois do ‘choque fiscal’ que aumentou o IVA para 19%, das ‘armas de destruição maciça’ e da cimeira da guerra e da mentira nos Açores…
Agora que a UE tenha encontrado num ‘cherne’ o seu “menor denominador comum”, como editava a BBC Internacional, é revelador do estado a que chegou esta Europa cinzenta, tristonha e atrelada ao carro de guerra norte-americano… É certo que Durão Barroso foi a quarta escolha, depois do inglês Chris Patten ter sido recusado pela França; de o belga Guy Verhofstadt, candidato de Paris e Berlim, ter sido vetado pela Inglaterra e pela Itália; e de o primeiro-ministro de um país com o peso do Luxemburgo ter recusado o cargo com o argumento simples do seu compromisso com o eleitorado. Nada que fizesse demover Durão Barroso, ávido de um milagre que o salvasse do calvário de carregar com a cruz de um governo desgastado, de uma coligação com morte anunciada e, ainda por cima, lhe oferecesse o céu… em Bruxelas!
Mas o cozinhado que deu origem a esta solução põe também em evidência as malfeitorias do método inter-governamental, grande responsável pelo défice democrático e de participação cidadã na vida comunitária que está na origem da enorme abstenção nas eleições europeias. Dum Conselho Europeu que deu à luz um arremedo de Constituição, cartilha constitucional do neoliberalismo, dum conjunto de chefes de governo copiosamente derrotados nas urnas há menos de duas semanas (com excepção da Grécia e da Espanha), só se poderia esperar a indicação de um dos seus pares: Durão, ‘O Derrotado’, o homem que confirmou Portugal como o último dos 15 e encostou o país à direita, facilitando a sua ultrapassagem por alguns dos novos parceiros desta Europa a 25. É até a perversão do famoso ‘princípio de Peter’, uma vez que é promovido a presidente da Comissão Europeia quem que já atingira o seu grau de incompetência como primeiro-ministro e abandona o cargo no meio da maior crise económica, social e política que Portugal já viveu desde o 25 de Abril…
Deixemos de lado os argumentos de que a presença de Durão em Bruxelas trará grandes benefícios para Portugal – apesar de “falar um excelente francês”, com ironizava o ‘Le Monde’. É ainda a cultura da ‘cunha’, espelho do subdesenvolvimento português e que não resiste ao fracasso de quase vinte anos da postura do ‘bom aluno’ de Bruxelas, agravada pela estúpida submissão ao PEC, à PAC e a todos os pactos da grande burguesia europeia. Contra a continuação desta política e contra o seu principal futuro executante, só pode ser o voto das esquerdas no Parlamento Europeu, recusando qualquer espírito de “selecção nacional”…
Que saídas para a crise política interna, aberta pela ‘fuga do cherne’ para Bruxelas? Optei, deliberadamente, por deixar este tema para a próxima semana. As cenas dos próximos capítulos só podem reforçar a realização de eleições antecipadas como única saída democrática.
Alberto Matos
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