A publicação do Decreto Regulamentar 6/2004, de 26 de Abril, foi o sinal de partida para um novo processo de legalização de imigrantes em situação irregular, isto é, sem visto de trabalho. Incidentes de percurso à parte, este processo é uma aula ao vivo sobre os corredores da burocracia portuguesa, onde os imigrantes se vão desenrascando de forma notável. No dia 3 de Maio, como era de prever, os impressos para o pré-registo dos imigrantes não chegaram à maior parte das estações de correio do nosso distrito - sobretudo nas vilas e aldeias - que os CTT se preparam, aliás, para encerrar; na quinta-feira os impressos esgotaram-se em Beja, reaparecendo na sexta; mas, entretanto, já muita gente tem papéis em stock, por via das dúvidas - querem melhor prova de integração?
Sublinhe-se, entretanto, que este decreto regulamentar surge com mais de um ano de atraso sobre a Lei de Imigração de 25/02/2003, alegadamente por disputas entre os parceiros da coligação. Se nem todos subscrevem a postura abertamente xenófoba de Paulo Portas, a verdade é que o discurso oficial de um pretenso ‘rigor na entrada e humanismo no acolhimento’ é desmentido todos os dias pela exploração do trabalho clandestino, por vezes roçando a escravatura. E o decreto regulamentar não vem, de forma nenhuma, pôr cobro a este estado de coisas. Senão vejamos:
Um dos critérios exigidos para a legalização dos imigrantes entrados em Portugal até 12 de Março de 2003 – e apenas esses – é que tenham em dia as suas obrigações perante o fisco e a segurança social. Primeira contradição, já que o cumprimento destas obrigações depende exclusivamente das empresas que, na esmagadora maioria, não passaram a declaração de rendimentos de 2002 e 2003 (pois se muitas nem passam recibos de salário…) e não entregaram os descontos à segurança social. Algumas empresas desculpam-se com a impossibilidade legal de celebrar contratos de trabalho; mas tal facto não os impediu de aceitar estes trabalhadores ao seu serviço.
O que é facto é que apenas uma minoria dos imigrantes entregou as declarações de IRS (ou sabe o que isso é…) e tem 90 dias de descontos para a segurança social. Mas além destes, a actual lei deixa de fora grande parte dos ilegais, chegados a Portugal depois de 12 de Março de 2003 – é o velho problema destas regularizações a conta-gotas que, só retroactivamente, recuperam uma percentagem diminuta dos imigrantes ilegais. O saldo é sempre negativo porque o número dos que entraram depois da data-limite é sempre superior aos que regularizam a sua situação, numa espiral que vai alimentando as bolsas de trabalho ilegal e os negócios das máfias – estrangeiras e portuguesas. Sim, porque há patrões que só querem mesmo é trabalhadores ilegais.
Qual é, então, a alternativa? A resposta é simples, uma espécie de ‘ovo de Colombo’: a legalização de todas e de todos os imigrantes que sejam encontrados a trabalhar – esta é uma prova inequívoca de que fazem falta e podem garantir a subsistência com o seu trabalho. Obviamente, a aplicação desta medida obriga a um reforço dos meios inspectivos, nomeadamente da IGT que actualmente, no distrito de Beja, faz verdadeiros ‘milagres’ com os meios humanos e materiais de que dispõe. Em relação às entidades patronais prevaricadoras é necessária, numa primeira fase, uma actuação pedagógica, desde que colaborem na legalização e regularizem as suas obrigações com o Estado.
Para os reincidentes tem de haver mão pesada, nas coimas e demais penalizações a aplicar, podendo chegar ao limite do encerramento puro e simples de pseudo-empresas que apenas sobrevivem à custa da fraude fiscal e social. A única forma de acabar com a contratação clandestina é atacando pelo lado mais forte: o da oferta. Se acabar a oferta de trabalho ilegal, a procura diminui e há uma certa auto-regulação dos fluxos de imigração. Além do factor trabalho, há obviamente a considerar as situações dos refugiados, de asilo político e outras na área dos direitos humanos, muito mal tratadas por governos que encaram as pessoas como simples mercadoria.
Além da regularização de trabalhadores em situação ilegal, este decreto regulamentar contempla outros aspectos, como o reagrupamento familiar e as autorizações de residência para os filhos de imigrantes nascidos em Portugal e os seus pais (mais uma vez, só até 12 de Março de 2003…), entre outros aspectos que respondem a velhas reivindicações dos imigrantes e do movimento associativo. Temos de abordar os próximos meses na perspectiva duma complexa e prolongada batalha política, jurídica e burocrática, na qual os imigrantes precisam de ter a coragem de dar a cara e dizer estamos aqui! E se o governo diz que está à espera de uns 20 mil pré-registos, talvez vá ter uma surpresa maior do que aconteceu com os brasileiros: é que há mais de 100 mil imigrantes ilegais que precisam de vir à luz da cidadania.
Algumas vozes exprimem naturais receios sobre o pré-registo dos imigrantes e ao perigo de ele servir de base a uma expulsão em massa daqueles a quem for recusada a legalização. Esse perigo não pode ser afastado à partida, conhecidas que são as posições políticas do governo e de alguns ‘falcões’ contra os imigrantes, que pouco ficam a dever a Le Pen. Mas vale a pena travar esta batalha pela cidadania, na qual as associações de imigrantes estão colocadas perante um enorme desafio. Mas a política do governo também tem pontos fracos - desde logo uma incapacidade real de expulsar milhares de imigrantes – e assenta numa hipocrisia, já que uma parte da sua clientela lucra com a existência de bolsas de trabalhadores clandestinos e, por isso mesmo, cria obstáculos à sua legalização mas precisa deles.
É bom lembrar que já foram publicadas várias leis da imigração, muitos decretos e nenhum deles é definitivo: também este pode e deve ser alterado, dadas as fragilidades evidentes em que assenta. É necessária uma nova política que encare a emigração como oportunidade e não como problema. Em democracia, nenhum governo pode subsistir muito tempo contra a opinião pública, alimentando mentiras e desrespeitando os direitos humanos. Este governo não é excepção, nem será o último da democracia instaurada há 30 anos em Portugal pela revolução do 25 de Abril. Afinal, o 25 de Abril foi feito para que todas e todos possam aceder à cidadania, independentemente da cor da pele, do credo ou da nacionalidade.
Alberto Matos (Radio Pax)
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