sexta-feira, maio 14, 2004

estórias de desassossego

Ontem confirmei que os valentes empreendedores das caravelas são mesmo os pais dos que hoje conduzem os nossos destinos!

esta é a minha leitura rápida de um capítulo de “A Guerra Naval no Norte de África”, eds Domingues, F.C., Matos, J.S. 2003. Edições Culturais da Marinha:

1552 - D. João III acede a um apelo de um deposto rei de Velez (no norte do actual Marrocos) para combater (outr)os califas contra quem também lutavam os portugueses. Sai então uma expedição de Lisboa que ruma ao norte de África, e é ver e vencer: rapidamente conquistam e entregam a cidade ao Aliado, com grande glória para Portugal. No regresso, porém, assim que põem o pé na água têm o azar de ser interceptados por uma numerosa armada argelina: batem-se valentemente, muitos morrem heroicamente, outros são feitos prisioneiros, levados para Marrocos e entregues aos infiéis (infiéis maus, claro, porque o reposto rei de Velez também era infiel, mas esse dos bons). Enfim, é este o relato oficial das desventuras da expedição, segundo carta enviada pelo (cativo) capitão da armada a D.João III, pedindo que (tendo em conta os serviços prestados à Nação) os fosse resgatar (de tão má sorte).

Este episódio é semelhante a muito outros relatados na nossa História. O interessante, neste caso, é que... há um segundo relato dos mesmíssimos acontecimentos! Estoutro assinado por Fernando Oliveira, dominicano de Évora e capelão da armada, que também seguia a bordo. Parece que este Fernando Oliveira era famoso por possuir uma língua afiada acerca de muitas práticas do reino (foi um crítico contumaz do tráfico de escravos, por exemplo). Um “homem desassossegado”, era assim que na época se dizia. Conta ele então que depois da conquista de Velez se deixaram os homens ficar três dias refastelados “a comer uvas e figos oferecidos pelo grato rei reposto” em vez de regressar imediatamente à base, “como é das regras”. Esta falta de profissionalismo resultou no óbvio: deu tempo a que o inimigo fosse chamar os amigos (dele!). Acrescenta Fernando Oliveira que os embarcados nem de longe cumpriam os requisitos de El-Rei para expedições semelhantes: os marinheiros eram lavradores de Entre-Douro e Minho à procura de melhor sorte, os soldados eram vagabundos de Lisboa arrebanhados por meio soldo – enfim, conquistaram Velez porque era terra pouca sem grande defesa, e porque na campanha se incluiam soldados do Rei árabe que os acompanharam desde Lisboa (e que entretanto ficaram por Velez). Continua Fernando Oliveira que à vista da armada argelina imediatamente se gerou o pânico entre os portugueses: corriam todos como baratas tontas, “desorganizados, uns faziam vela sem haver vento, outros cortavam amarras sem ver para onde virava a proa, outros (os mais espertos...) saltavam para os batéis e fugiam para terra, os mais lentos entregaram-se”. Fernando Oliveira acusa o mau apresto da armada, a má condição dos embarcados para a missão, a corrupção do comando da empresa (senhores que apenas procuram enriquecimento fácil), e o comportamento inaceitável perante o inimigo. Dizia ele que muitos dos “que em Portugal são senhores” e (des)organizam estas expedições às custas de El-Rei (que é como quem diz, dos impostos do povo...) “bem mereciam por lá ficar cativos”.

moral da estória? Que sempre se desbarataram dinheiros do reino em negócios pessoais e incompetentes? Que com alguns retoques também dos fracos reza a História? Que planear, formar, organizar, são formas verbais meramente decorativas em português? Que os portugueses de hoje não são piores que os de outrora? Que tão pouco parece haver melhoria alguma? Que o que se escreve nem sempre é o que se diz ou o que se diz nem sempre é o que se faz?

mpf

(como imaginam, o Fernando Oliveira acabou por sossegar no colo do Santo Ofício)

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