quinta-feira, abril 08, 2004

No Vespeiro Iraquiano

Alberto Matos

Três feridos da GNR no Iraque, foi a notícia que agitou o fim de semana informativo, abalando ligeiramente a modorra nacional, entre as últimas do processo Casa Pia, a troca de acusações a propósito da jornada futebolística e os preparativos para o Euro 2004 - já só faltam 60 dias! Mas a indiferença pode de novo instalar-se: como disse o primeiro-ministro, "graças a Deus" foram feridos sem gravidade e, ontem mesmo, lá seguiram mais 40 homens para o contingente da GNR no Iraque. Gostaria de sublinhar a expressão "Graças a Deus" a que poderemos acrescentar "oxalá", invocando o nome de Deus mais popular no Iraque, pois só mesmo pelas graças de Alá as coisas não correram pior até hoje, 6 de Março, pelas 11 horas da manhã.

O que Durão Barroso não disse é que está em curso uma verdadeira insurreição xiita no Iraque que, a partir de Bagdad, se estende ao Sul, incluindo a cidade de Nasiriyah, onde se encontra sediada a GNR sob o comando italiano - e hoje mesmo, pela manhã, já se tinham registado 11 feridos entre os italianos. Mas é bom que o país tome consciência que a GNR está metido num autêntico vespeiro no Iraque, uma roleta russa em que a morte pode espreitar atrás da próxima esquina. E como Deus, Alá ou Jeová não podem ser julgados pela lei dos homens, é bom que os responsáveis políticos que atrelaram Portugal à coligação da mentira se preparem para assumir as suas responsabilidades.

Em Fevereiro, Durão Barroso reafirmou em Madrid que se sentira muito bem na cimeira de guerra das Lajes, onde foi dado o tiro de partida para a invasão do Iraque. Aznar agradeceu o apoio à campanha eleitoral do PP espanhol, retribuindo o "meu caro José Maria" com um caloroso "meu querido José Manuel", longe de imaginar que menos de um mês depois os eleitores castigariam de forma exemplar a política assente na mentira, refinada após os atentados de 11 de Março.

Um ano depois da invasão do Iraque, estão à vista de todo o mundo a mentira e a manipulação dos EUA, a propósito das famosas armas de destruição maciça. Não pegou a tentativa de culpar a CIA e os serviços secretos pelas 'más informações' - como se estas não fossem encomendadas. Caiu mal a graçola imbecil de Bush, fingindo que andava a procurar as ditas armas nos armários da Casa Branca, quando bastava uma visita de rotina ao Pentágono. Em ano de eleições presidenciais, foi a vez de Collin Powell se apresentar de corda ao pescoço, qual Egas Moniz, dizendo que fora enganado e assumindo o triste papel de figurante que lhe estava destinado na administração norte-americana. Mas em Portugal os nossos figurantes de terceira ou quarta categoria recusam-se a reconhecer que mentiram deliberadamente aos portugueses e ao parlamento.

A situação no Iraque é hoje verdadeiramente calamitosa de todos os pontos de vista: humanitário, alimentar, sanitário e de segurança para os seus habitantes e para os próprios invasores. As baixas entre os soldados dos EUA já ultrapassaram 600 mas, na linguagem cínica da máquina de guerra, o saldo ainda é positivo, pois previram mil mortos nesta guerra. Não admira que alguns cartoonistas já mostrem a célebre frase "YANKEES GO HOME!" pintada nas paredes pelos próprios soldados americanos.. E as baixas atingem também centenas de ingleses, polacos, espanhóis e italianos.

A situação tende a agudizar-se com a aproximação do 30 de Junho, data anunciada para a transição de poderes no Iraque. A queda da tirania de Saddam Hussein, justificativa à posteriori da invasão do Iraque, não deu nem podia dar lugar a nenhuma espécie de democracia. No seio do próprio governo fantoche nomeado pelo administrador americano, Paul Bremer, acentuaram-se as divisões, em especial depois da pretensa Constituição imposta pelos invasores. E a insurreição está a generalizar-se com a ordem de prisão contra o radical xiita Moqtada al-Sadr, filho do líder religioso assassinado em 1999 pelo regime de Saddam Hussein. Mesmo na perspectiva optimista de se realizarem eleições, um regime de ayatollahs será o resultado natural da manipulação da maioria xiita, hoje em revolta aberta contra os invasores. Sem esquecer a minoria sunita, antiga base de apoio de Saddam, e as aspirações independentistas dos curdos: uma guerra civil anunciada, a somar à invasão.

E é neste vespeiro que se encontra a GNR. Só mesmo a senhora de Fátima lhes poderá valer, enquanto as ordens forem dadas por Bush e Blair, retransmitidas em Lisboa por Durão Barroso, com a complacência inadmissível de Jorge Sampaio. Um outro mundo tem de ser possível, se quisermos impedir a barbárie. Um mundo onde a guerra deve tornar-se um tabu para a Humanidade e para a política, como afirmou este fim de semana em Lisboa o italiano Fausto Bertinotti.

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