Com atraso em relação a outros países, o debate da chamada Constituição Europeia vem-se desenvolvendo em Portugal, em torno da realização (ou não) de um referendo e da respectiva data. A questão do referendo é sem dúvida importante, até porque seria a primeira oportunidade para os portugueses se pronunciarem directamente sobre a construção europeia, desde a adesão, em 1985, passando pelos tratados de Maastricht (1992), Amesterdão e Nice. Ao contrário doutros povos que debateram, votaram e até rejeitaram alguns tratados, obrigando à sua modificação – estou-me a lembrar da Dinamarca e da Irlanda – o povo português foi remetido para um estatuto de menoridade cívica, algures entre o ‘bom aluno’ e o ‘Chico-esperto’, conforme a tónica dos diversos governos.
Os resultados estão à vista: arrebatámos à Grécia o último lugar do comboio europeu e, mais recentemente, a obsessão do défice e a terapia de choque de Manuela Ferreira Leite, tornaram Portugal um caso de estudo, pela negativa. O que terá isto a ver com a Constituição Europeia, é a pergunta que já adivinho em muitos ouvintes. Directamente, a política dos governos não depende da existência ou ausência duma Constituição. Mas quando as políticas e os políticos neoliberais ocuparam a chamada Convenção, presidida pelo antigo presidente francês, Giscard d’Estaing, que preparou o actual projecto de Constituição europeia, há todas as razões para estarmos preocupados com o agravamento da ortodoxia monetarista que está na origem da actual crise.
É necessário um debate público e aberto, descodificando o linguajar ‘europês’ dos burocratas de Bruxelas, para permitir uma opção consciente de todos os cidadãos e cidadãs. Em Portugal não é isso que está a acontecer nos debates entre ‘especialistas’ nem é o que pretendem os partidos que têm monopolizado a construção europeia. Já se percebeu, aliás, que nenhum quer verdadeiramente o referendo: o governo PSD-PP, ao impor a data de 13 de Junho, sabe que tal é impossível porque a Constituição portuguesa proíbe a realização de referendos em dia de eleições, neste caso europeias; e afirmar que esta data traria maior participação chega a ser anedótico: a média da abstenção nas eleições para o PE tem andado acima dos 60% e não se prevê que baixe em 2004, com o Europeu de futebol a começar em 12 de Junho – o dia de reflexão. A menos que, num golpe de mágica, Durão & Portas mandem instalar urnas de voto à entrada dos estádios e nos acessos às praias…
Mas o pior é que, a 14 de Maio, a Conferência Inter-Governamental (CIG) aprovará o texto final da dita Constituição Europeia. A partir desta data nenhumas alterações são possíveis e portanto qualquer referendo – como o proposto pelo PS para final de 2004 – significa ‘pegar ou largar’, uma espécie de plebiscito que nada tem de democrático e mais parece uma chantagem. A única posição coerente, defendida por constitucionalistas como Jorge Miranda, Vital Moreira e personalidades insuspeitas como João Salgueiro, seria um referendo anterior a 14 de Maio, no qual os portugueses se pronunciem sobre questões vitais como a subordinação ou não da C.R.P. à Constituição europeia; a criação do cargo de Presidente do Conselho Europeu; e o aumento de atribuições e poderes da UE no domínio da defesa. A decisão dos portugueses e dos restantes povos ainda poderia condicionar a CIG de 14 de Maio. Mas está quase a esgotar-se o prazo de uma revisão constitucional que viabilize a realização de um referendo e parece claro que, mais uma vez, PSD, PP e PS se combinaram numa espécie de ‘jogo do empata’ do qual não sairá referendo nenhum.
Não entrando hoje no debate em concreto do projecto de Constituição – que contém limitações inaceitáveis ao direito à greve e ao seu âmbito, por exemplo – ressalta, desde logo, a sua génese pouco democrática: uma ‘Convenção’ com cerca de 200 personalidades escolhidas pelos governos e presidida por Giscard d’Estaing, com voto de qualidade. Desde a Constituição dos EUA, aprovada na Convenção de Filadélfia, passando pela Revolução Francesa, que uma Constituição democrática só pode sair duma assembleia constituinte livremente eleita, como aconteceu também em Portugal após o 25 de Abril. É verdade que houve caricaturas, como as Cartas Constitucionais impostas pela realeza e pela aristocracia; mas, seguir esse exemplo, seria recuar mais de 200 anos. É, no entanto, o que nos propõe, no século XXI, esta nova aristocracia financeira: não uma Constituição, mas uma cartilha neoliberal ditada pelos governos. A esta fraude é preciso dizer não e apresentar alternativas, como procuram neste momento as esquerdas europeias. Voltaremos este tema, brevemente.
Alberto Matos - Crónica semanal na Rádio Pax
Sem comentários:
Enviar um comentário