segunda-feira, novembro 17, 2003

O TGV e a produção subsidiada de lixo

Segundo Noam Chomsky (e muitos outros), nas economias do moderno capitalismo de Estado tem que haver mecanismos de estímulo keynesiano que complementem a procura privada, normalmente insuficiente, orientem
a economia para setores de alta tecnologia, nos quais a investigação e desenvolvimento são muito caros e necessitam portanto de ser subsidiados pelo Estado, e permitam, em geral, a produção subsidiada de lixo, isto é, a utilização da capacidade produtiva excessiva para produzir coisas que não são precisas.

Nos Estados Unidos este papel é desempenhado pelo Pentágono e seu sistema (o Departamento de Energia, etc) (e, em menor grau, pela NASA), que orientam e subsidiam a indústria avançada através da compra de lixo militar diverso. Ocasionalmente é necessário um local onde depositar o lixo da geração anterior, e para isso encontra-se países como o Iraque, a Sérvia, o Afeganistão, etc. Deitado fora o lixo da geração anterior, o Pentágono recomeça a sua tarefa, encomendando mais e mais moderno lixo.

Na Europa, em que a população é mais pacifista e atenta, um método análogo não funcionaria bem. (A população europeia tem em contrapartida a desvantagem de ser mais dócil aos desígnios estatais, mais pronta a aceitar o Estado como sendo fundamentalmente bom.) Inventou-se então o TGV. Primeiro em França, depois na Alemanha, depois em Espanha, e agora a nível europeu com fundos da UE. Já se sabe que os governos português e espanhol só decidiram construir um TGV a ligar os dois países porque a UE paga: se não fosse a UE, não faltariam projetos alternativos de vias férreas muito mais baratos e úteis para construir. Mas, como a UE paga a 50%, não convem desperdiçar a oportunidade.

O TGV é um negócio bestial. É-nos vendido chave na mão, com 0% de input da indústria, tecnologia e mão-de-obra nacionais. Não nos serve para grande coisa -- poucos ibéricos viajam entre Madrid e Lisboa, a única linha que, em termos de distância, faz sentido -- mas isso não faz mal: a Ibéria é apenas um terreno no qual companhias alemãs e francesas colocam, pagas com o dinheiro da UE, o seu lixo. É um produto de alta tecnologia, que permite à indústria europeia investigar, subsidiada pelo Estado europeu, ramos avançados da eletrónica, ciência dos materiais, etc, encontrando neles aplicações.

Quer isto dizer que o TGV na Ibéria é de todo mau? Eu não chegaria tão longe. A Ibéria precisa de linhas férreas em bitola europeia (fundamental para o tráfego eficiente de mercadorias) e rápidas (200 km/hora). O TGV fornecê-las-á a ambas. Suspeito, aliás, que na maior parte dos casos não fornecerá mesmo mais do que isso. Não estou a ver Portugal e Espanha construirem um TGV a sério (350 km/hora) do Porto a Vigo, de Évora a Faro, nem de Aveiro a Salamanca. Muito menos as ligações (imprescindíveis) aos portos de Sines, Setúbal e Leixões serão a 350 km/hora. TGV TGV, será só Lisboa-Madrid. E será um belo sorvedouro de dinheiro, não só na sua construção mas, pior, na sua manutenção. E essa terá que ser paga integralmente por nós.

Quanto ao mais, o TGV não tirará praticamente carros nenhuns das estradas. O que, isso sim, seria fundamental fazer. Mas, se tirar camiões TIR, já não será mau.

Luís Lavoura

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