À medida que o tempo evolui (desculpem lá, já sou um bocado velho), verificam-se curiosas concordâncias entre pessoas que antes discordavam, entre pessoas com pensamentos políticos opostos.
No tempo do Salazar o ensino superior não era gratuito, mas era bem menos socialmente selectivo do que é hoje, ao que parece. O meu pai, filho de uns camponeses miseráveis (pai emigrado 20 anos no Brasil, mãe na horta a plantar couves) pôde tirar o curso superior de medicina, sempre à custa do Estado, e a viver fora de casa desde os 10 anos de idade. Mas o ensino era exigente: o meu pai sabia que, se falhasse uma cadeira que fosse, era imediatamente chamado para a tropa. E a tropa durava dois anos. Era o fim do sonho universitário.
Depois do 25 de Abril foi um forrobodó. Muitos alunos perderam muitas aulas. Os comunistas no governo inventaram então as "passagens administrativas". Os alunos passavam de ano mesmo que não tivessem tido aulas e mesmo que não soubessem nada. A minha mulher, por exemplo, chegou à idade que tem não sabendo basicamente nada de história, porque nunca teve aulas disso no liceu.
Nessa altura, o PSD e os burgueses em geral, na oposição, criticavam asperamente os comunistas. É o fim da educação, diziam. E tinham razão, claro. Bem mais razão do que o que previam. Mas depois, no tempo do Cavaco, o PSD chegou ao governo e tinha que exibir à CEE o sucesso escolar dos portugueses. Então, reeditaram as passagens administrativas. Mais uma vez, os alunos passaram a poder passar de ano sem saberem nada. Foi uma maravilha. Acabaram-se os exames na primária, chumbar só com justificação de força maior, era tudo a andar para a frente, rumo à universidade. Toda a gente concordou, desta vez. Ninguém resmungou que aquilo fosse o fim do saber ou o fim da educação. Toda a gente gostava de ver os filhos a passar o ano e a chegar à universidade e a andar de traje académico e a receber um canudo. Isto é que é um país porreiro. O PSD a fazer a política do PCP. Os burgueses embevecidos com o maravilhoso sucesso escolar dos seus filhos.
E assim chegamos aos tempos das propinas. O ensino superior, dito "democratizado", está na verdade muito mais exclusivo: só as classes média e alta o podem aguentar, os pobres não têm dinheiro para pagar o aluguer de um quarto na cidade. Os níveis de exigência estão de rastos, a bem da dita democratização: qualquer palhaço com um 5 a matemática, que nem sabe fazer uma derivada, pode ir para a universidade desde que os papás tenham dinheiro para pagar o quarto alugado. A ação social escolar, deteriorada pelas falsas declarações de riqueza -- não se sabe quem é rico nem quem é pobre, nos tempos que correm, graças ao segredo bancário, aos offshores, aos salários não declarados e aos rendimentos ainda menos declarados -- dá aos ricos o que devia dar aos pobres.
Actualmente, estamos precisamente ao contrário do que acontecia no tempo do Salazar: para estar na universidade precisa de se ter dinheiro, mas não se tem que ter saber nenhum. Em se tendo entrado -- e graças a Deus as portas estão bem abertas -- não se precisa de exibir mérito nenhum. Pode-se lá ficar anos a fio, que os papás pagam. Pagam a universidade, o quarto alugado, o traje académico, as festas, a gasolina do carro, a roupa à moda (sim, porque o traje académico é só para dar nas vistas -- não é como no tempo da minha mãe em Coimbra, em que a capa
era uma coisa que os estudantes mais pobres compravam para se manterem quentes, era um traje para a gente pobre que frequentava a universidade -- hoje em dia uma capa custa um balúrdio), e, com um bocado de sorte
e passados muitos anos, a viagem de finalistas -- ao Algarve não, claro, à República Dominicana ou às Maldivas.
(Ainda há 20 anos atrás, quando eu fiz o meu curso, não havia na minha turma um único estudante que andasse de carro. Fui até colega da filha do então presidente da Assembleia da República, e íamos todos, ela inclusive, apertadinhos no mesmo autocarro 38 para as aulas.) E ninguém parece ter vontade de alterar este estado de coisas.
Toda a gente continua a só querer falar no dinheiro. Propinas sim ou propinas não. Dinheiro dos pais ou dinheiro dos contribuintes. Isso é que conta: dinheiro. As notas não interessam nada. Só para entrar para medicina e mais um ou dois cursos -- e mesmo aí, só à entrada.
Ninguém já se interessa pelo saber. Só o dinheiro e o canudo é que contam.
Luís Lavoura
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