segunda-feira, outubro 06, 2003

POLÍTICA E JUSTIÇA BRANCAS

António Pedro Dores*
antónio.dores@iscte.pt

A Marcha Branca pelos direitos das crianças foi um sucesso em Portugal.
Temos que nos congratular e perguntar o que se está a passar que permitiu esse evento agora, para cumprirmos o desejo de que a defesa das crianças não seja apenas uma efeméride anual, e a violação dos seus direitos o quotidiano.
Há vários movimentos internacionais contra o abuso de crianças. Um deles atacou, uns anos atrás, Portugal por não combater o trabalho infantil. Só nessa altura o Estado português instalou um serviço dedicado a esse assunto, dirigido pela Drª Catalina Pestana, com resultados práticos, embora sem conseguir debelar o problema: No caso do abuso sexual, os ecos chegam-nos da Bélgica, através da Marcha Branca, e dos EUA, pela proposta de um dia mundial contra o abuso sexual de crianças a consagrar pela ONU, e a celebrar dia 19 de Novembro. Este ano, Portugal vai participar através da convocatória de uma vigília em frente ao Palácio de Belém. Desejamos um sucesso equivalente à Marcha Branca e que os dois movimentos internacionais
se possam encontrar e ajudar mutuamente.
Em termos práticos, entretanto, foi criado um organismo de Estado para defesa dos direitos das crianças, dirigido por uma senhora magistrada que se tem destacado nessa cruzada - Drª Dulce Rocha. A pergunta é: será isso suficiente? Ou é apenas uma reacção política, no pior sentido, enquanto os ânimos estão exaltados? À espera que as coisas voltem à normalidade, para que possamos novamente dormir descansados, enquanto as crianças são abusadas em silêncio, como desejou um conhecido psiquiatra num douta entrevista televisiva?
Na Marcha Branca de Lisboa, se houve acontecimento importante foi a politização – no bom sentido – da manifestação, rompendo com o silêncio para gritar palavras de ordem e bater palmas. Manifestação de mulheres, de todas as classes sociais, que sabem bem, sempre souberam, como as crianças são abusadas a coberto do silêncio. Muitas dessas mulheres não se escusaram a assumir a responsabilidade de termos estado calados e gritaram a quem parecia admoestá-las por terem tomado a palavra: “Caladas já estivemos nós demasiado tempo!” Efectivamente.
Pessoalmente, não estou nada de acordo com a extrema judicialização do assunto, com gritos a favor de juizes contra advogados e com reivindicações de maior dureza do processo penal. Embora compreenda ser essa uma frente de luta importante e esgotante para muitos daqueles que se viram lançados na fogueira mediática por uma boa causa, enquanto os políticos, propriamente ditos, fogem do assunto como diabo da cruz com o pretexto de que a justiça é independente do poder executivo e não deve ser pressionada. Como não estou de acordo com a psicologização do assunto, centrado no pseudo-problema científico sobre a mentira, assunto de facto ignorado pela ciência e, em particular, pelas ciências psicológicas, a não ser quando coloniza as ciências criminais. Por isso me surpreendeu, pela positiva, a intervenção de Ana Gomes, em nome do Partido Socialista, que fez uma declaração política de alto valor, que merece ser transcrita, meditada, acompanhada. Mulher de guerras pela sobrevivência e pela dignidade, a ex-diplomata em Jacarta tem surpreendido os portugueses com declarações corajosas que enervaram os guardiões dos “brandos costumes”. Desta vez, quando quase toda a gente apostou na contenção defensiva, tipo “nós vamos continuar cá”, foi das poucas pessoas que pediu responsabilidades ao Estado pela incúria passada – e presente – e a mais bem colocada para influenciar as decisões do Estado português, embora não seja sequer deputada. Acabar com as redes pedófilas não é condenar alguns clientes! Obviamente! Cuidar das crianças abusadas não evita que outras estejam em risco iminente de virem a ser abusadas no presente e no futuro próximo. Evidente! A justiça justiceira que apetece fazer contra aqueles que foram apanhados nas malhas da Justiça revela-nos a nossa incúria passada mas não nos garante uma nova atitude no futuro.
Passamos a culpa do nosso silêncio para os abusadores, mas não nos armamos para os combater no dia-a-dia.
Quando os nossos infantários deixam a tutela do Ministério da Educação e passam para a tutela da Segurança Social, estão a salvaguardar-se os direitos das crianças ou a diminui-los? Quando o novo modelo educativo
proposto para a Casa Pia prevê como castigo disciplinar máximo a tutela do sistema penal de menores, que confiança têm os “mestres” e educadores na sua proposta? Quando a pretexto da crise financeira do Estado, o governo opta por desinvestir na educação, de que resultados estamos à espera?
A Marcha Branca é expressão de um movimento social desorganizado que pode engrossar, para benefício das crianças e do país, mas também pode desagregar-se, já que se juntaram ali pessoas com ideias muito diferentes.
Para além da solidariedade internacional, belga, americana e outras que podem ajudar a focar as nossas atenções e a mobilizar as nossas consciências, a minha proposta é que as mulheres das diferentes
sensibilidades, que estiveram na Marcha Branca, se organizem para influir junto dos diferentes partidos políticos – quer se queira quer não, as organizações mais influentes em Portugal – de forma a tomá-los por dentro no seu machismo orgulhoso e indiferente, transformando-os – bem disso precisamos – em organizações eticamente comprometidas com causas como estas:
a assunção pelo Estado de todas as responsabilidades que lhe cabem na segurança das crianças contra os abusadores; a condução de campanhas e debates políticos sobre como os portugueses, na sua vida quotidiana, se podem organizar para proteger as crianças ANTES delas serem abusadas.

*Sociólogo / Professor Universitário / membro da Plataforma “Não Ao Abuso Sexual de Crianças”

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