terça-feira, setembro 16, 2003

Viriato Era Pastor, Não Era Lenhador
Por HENRIQUE PEREIRA DOS SANTOS
Segunda-feira, 15 de Setembro de 2003

Não me parece que esta seja a melhor altura para discutir o problema dos fogos: demasiada emoção, demasiado ruído tornam quase impossível uma discussão serena. Mas tanta informação e tanto comentário tornam impossível não reparar como um dos dados centrais do problema parece estar a ser posto de lado, como tem sido nos últimos cem anos de discussão da política florestal: é que dos pouco mais de oito por cento de área florestada nos fins do século XIX passámos para os 38 por cento actuais.

Grande parte deste crescimento foi possível pela política de expansão florestal iniciada nos fins do século XIX e fortemente impulsionada pelo Estado Novo. Este impulso foi muitas vezes compatível com as necessidades das populações (como na defesa contra o avanço das dunas ou nas zonas de economia do milho em que a produção de gado foi naturalmente perdendo importância para a produção de cereais), mas foi frequentemente apoiado pela natureza autoritária do Estado Novo nas zonas de serra de economia pastoril.
Mesmo onde os baldios foram "loteados" em sortes que hoje explicam parte da estrutura minifundiária dos nossos povoamentos florestais, estas bouças estavam integradas numa economia de subsistência em que os matos desempenhavam um papel fundamental na produção de milho porque possibilitavam a manutenção da fertilidade das terras, com base em pesadas estrumações anuais.

Se, como Jorge Paiva sublinhou já neste jornal, o abandono desta estrumação (substituída por adubações químicas ou por estrumações provenientes da produção intensiva de animais, aves, porcos, vacas, ou da compostagem do lixo urbano) e o abandono da utilização da lenha na cozinha e para aquecimento contribuem grandemente para a acumulação de combustíveis nas matas, também a diminuição brutal da pastorícia tem uma importância fundamental. Acresce que o esforço de florestação do país se fez em grande medida contra os malefícios do sobrepastoreio, sobretudo de cabras, evidente
em grande parte do país, com solos despidos e grandes áreas quase sem vegetação em consequência de uma encabeçamento excessivo e uma utilização desregrada das queimadas.

Mas todos estes factores estão fortemente diminuídos quando não extintos em grande parte do território. Em consequência assiste-se a uma exuberante recuperação da vegetação autóctone. Esta recuperação dá origem ao combustível que, em condições extremas, arde da forma como se viu este ano.

Não vale a pena dizer que são os portugueses que não sabem gerir o seu património, ou que temos uma política de prevenção deficiente. Basta reparar nos problemas que os americanos, os australianos, os espanhóis, os franceses
e os italianos também têm tido para perceber que podendo haver decisões erradas estritamente portuguesas, há muitas razões gerais que não podem ser escamoteadas.

A ser assim, o melhor que temos a fazer é deixarmos de acreditar em soluções milagrosas: estamos perante um problema novo, com razões económicas e sociais profundas e que não pode ser resolvido apenas no quadro de qualquer
política florestal, por mais eficaz e bem definida que seja.

As políticas de supressão completa do fogo têm vindo a ser abandonadas, seja porque há sempre um momento em que o fogo foge do controlo e os combustíveis acumulados dão origem a tragédias de dimensão não imaginada, seja porque sãovambientalmente desastrosas. Basta pensar que as soluções de remoção do combustível que mais têm sido faladas implicam sempre a retirada da matéria orgânica do sistema, seja pelo seu corte e remoção, seja pela sua queima, o
que significa que a longo prazo estamos a atrasar o processo de recuperação dos solos que em grande parte justificou a política florestal que o país adoptou nos últimos cem anos.

Aparentemente o único processo economicamente viável que simultaneamente reduz a combustibilidade da vegetação e, ao mesmo tempo, retém o essencial da matéria orgânica no sistema, contribuindo para o fundo de fertilidade do
nosso território, é a produção animal, o que, de forma extensiva, só pode ser feito através da pastorícia.

O que me levou a escrever este artigo não é a convicção de que a pastorícia é a solução para o problema, nem a ignorância dos enormes problemas com que se depara a utilização prática do pastoreio racional na prevenção de incêndios, mas a minha estupefacção pela forma como esta parte da solução tem sido sistematicamente descartada sem justificação.

Durante anos o fogo foi entendido como um inimigo da floresta sem qualquer possibilidade de recuperação. Actualmente há dezenas de investigadores e técnicos a defender a utilização do fogo controlado na política de prevenção e na gestão das matas e habitats. Para isso foi preciso que investigadores americanos reintroduzissem cientificamente em Portugal essa técnica milenar de gestão da paisagem (e muito tem Portugal a agradecer a Moreira da Silva a ausência de vistas curtas que lhe permitiu falar positivamente do fogo quando isso era ainda um anátema). Espero que não seja preciso tanto para
que alguém com capacidade de decisão admita sequer avaliar em que medida pode ser utilizado o mais eficaz processo de transformação de matéria combustível em matéria orgânica não combustível, com a vantagem adicional de
produzir uns cabritos pelo meio.

Veneno ou remédio? A diferença é só uma questão de dose.

Arquitecto paisagista

Artigo copiado daqui

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