Questões de Vida ou de Morte
Na tradição nipónica, o Seppuku, mais conhecido por hara-kiri, constitui mais do que um suicídio; é um acto de suprema dignidade, praticado por quem só pode viver com honra. O agricultor sul-coreano Lee Kyang Hae, de 55 anos, escolheu a cimeira da OMC para golpear o seu tórax com uma faca, rodeado por centenas de outros manifestantes. «A OMC mata os agricultores» era uma das mensagens nos cartazes empunhados por este e outros manifestantes em Cancún.
O que leva um homem a um acto tão radical? O comércio? Resposta: questões de vida ou de morte. No dia deste suicídio discutiam-se as distorções no mercado internacional do algodão, causadas pelos subsídios dos países ricos às suas agriculturas. São cerca de quatro mil milhões de euros anuais, dos quais metade nos E.U.A.. Benin, Chade, Mali e Burkina Faso propuseram a eliminação daquelas subvenções. Pode parecer uma reivindicação extremista, mas na realidade é uma proposta em nome da mais elementar justiça.
Se desviarmos o olhar da árvore – o algodão – e olharmos para a floresta – a agricultura, vemos um bilião de dólares por dia em apoios, geradores de excessos de produção que inundam os mercados mundiais, levando na enxurrada os produtores dos países pobres. Nesta perspectiva, realizamos tratar-se de uma questão de vida ou de morte.
Os grandes senhores do comércio mundial alinham pela habitual simpatia diplomática. Os E.U.A. insistem na sua fórmula usual: aceitamos se recebermos algo em troca. Esse algo é, uma vez mais, a liberalização global dos mercados. Chegam mesmo a sugerir uma cedência no tema do algodão como moeda de troca para obter aberturas nos mercados europeu e japonês. Enfim, o desencontro do costume: uns discutem princípios, outros negócios.
A eliminação dos subsídios agrícolas é uma questão de princípio, uma base sem a qual qualquer discussão sobre a agricultura fica envenenada – pois aqueles biliões envenenam o mercado. Os países pobres têm toda a legitimidade para exigirem essa abolição e de manterem, pelo seu lado, algumas barreiras ao investimento estrangeiro. Ora é neste ponto que as posições divergem.
Os países ricos continuam a ignorar a sustentabilidade económica e a legitimidade históriaca que acompanham aquelas duas exiigências. Não é sério defender que E.U.A. e Burkina Faso abram os seus mercados logo após uma supressão dos subídios americanos, como se de economias iguais se tratasse. O resultado seria – já é – insustentável para as populações da economia mais frágil e muito ligada ao sector agrícola. Também não é sério esquecer o colonialismo económico praticado por estados ocidentais, através das suas companhias transnacionais, que não hesitam em destroçar o ambiente e o tecido socio-económico de muitos países em nome da rentabilidade económica.
Uma postura séria é corrigir o caminho da história e conceder aos países pobres uma oportunidade real de prosperidade. Basta dar-lhes tempo e instrumentos para consolidarem a sua economia internamente e, no mercado externo, não lhes barrar o caminho até nós, consumidores. Mas isto só será possível quando se deixar de ver ali meros territórios indiferenciados, mercados de mão-de-obra barata. Talvez então actos como o de Lee Kyang Hae fiquem para a história não como notas de folclore, mas como aquilo que são: questões de vida ou de morte.
Vitor Simões
Jornalista. Coordenação Portuguesa de Comércio Justo
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