segunda-feira, setembro 29, 2003

Gorjetas

Luis Ernesto Derbez, o ministro dos negócios estrangeiros do México que preside à cimeira de Cancún, já não disfarça a sua apreensão. Longe está a o optimismo, que o levou a oferecer às delegações um cabaz de produtos mexicanos, entre os quais café de comércio justo. A expectativa de que a Agenda do Desenvolvimento de Doha pudesse ser cumprida, em particular em sectores-chave como o da agricultura, começa a esfumar-se.

“As pessoas pagam uma gorjeta de 10% no restaurante e nós estamos a pedir menos”, desabafava um dos representantes dos países africanos que procuraram combater os subsídios à produção de algodão nos países desenvolvidos. Em Cancún, mesmo uma gorjeta tem que ser negociada, com quem a recebe a ter que dar algo em troca.

No tema Agricultura, um acordo concreto continua por definir; no Desenvolvimento, não se aprofundam medidas de tratamento especial e diferenciado para os países pobres, com os E.U.A. a impedirem que a implementação de medidas fique decidida (ficamo-nos, uma vez mais, pelas intenções); no Acesso aos Mercados Não Agrícolas, o próprio cooordenador dos trabalhos classificou-os de “missão impossível” e, por fim, nos Temas de Singapura (investimento, concorrência, transparência nas compras públicas e facilitação do comércio), a U.E. continua isolada, recusando-se a perceber que é prematuro discutir estes aspectos antes de resolver os anteriores.

Do que é que estávamos à espera? Que agradável sol de Cancún iluminasse os representantes dos estados no sentido duma concórdia universal? A OMC é o produto do mundo actual, fundou-se com base em pressupostos perversos e há que assumir isso quando formamos expectativas sobre as suas cimeiras. A ideia de que se devem regular as trocas comerciais à escala mundial, é uma evidência. Que essa regulação assente na liberalização dos mercados, é uma imprudência. Mas isso pouco importa, desde que os interesses das economias mais fortes fiquem assegurados. No actual modelo de desenvolvimento, isso equivale a dizer: desde que as economias mais frágeis continuem frágeis. Para apaziguar sentimentos de injustiça, dão-se algumas gorjetas – não sem antes regatear – e assinam-se declarações de princípio, que nunca serão implementadas. Ecce OMC.


Nota: Cancún saudou a entrada de dois novos membros, o Nepal e o Cambodja. Este estado teve de obrigar-se a introduzir as patentes de medicamentos até 2007, embora a Declaração de Doha defendesse 2016 como prazo mínimo...


Vitor Simões
Jornalista Coordenação Portuguesa de Comércio Justo

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