Faça-se Justiça
Cancún na óptica do Comércio Justo
Imagine uma sociedade onde uma funcionária de limpeza paga mais imposto do que o director da empresa onde ela trabalha. É assim que funcionam as relações comerciais internacionais. As taxas aplicadas nos E.U.A às camisas do Bangladesh são 20 vezes superiores às que incidem sobre bens importados do Reino Unido. Exemplos destes não podem continuar a multiplicar-se, sob pena de Cancún ser mais uma cimeira de consolidação dos interesses das grandes empresas transnacionais dos países mais ricos.
O Comércio Justo é uma rede internacional de organizações (ONG’s, importadores, lojas) que há 40 anos procura dar aos produtores nos países desfavorecidos uma oportunidade de desfrutar da riqueza que geram com o seu trabalho, numa óptica de desenvolvimento sustentado. Nesse sentido, dá formação e financiamento; paga preços justos e mantém relações de longo prazo. Por outro lado, exige a aplicação dos rendimentos na comunidade e o respeito pelo ambiente e os direitos humanos.
Apesar de ratificadas por dezenas de países, as convenções da ONU e da Organização Internacional do Trabalho são desrespeitadas todos os dias em muitos desses estados. A pressão liberalizante saída de anteriores cimeiras da OMC tem agravado este problema. “Liberalizar” não é sinónimo de “libertar”. Em Outubro de 2002 foi publicado um relatório sobre a política comercial da Zâmbia nos anos 90, marcada por uma liberalização total da economia. Ficou patente uma diminuição do PIB per capita e há mais 5% de zambianos a viver na pobreza. Outros exemplos apontam para conclusões idênticas.
Um comércio sem regras é um comércio sem rumo. Serve o bem-estar de alguns, mas não o de todos. Nem o do planeta. O desenvolvimento sustentado não pode continuar a ser apenas uma expressão politicamente correcta. Tem que ser uma política concreta. Os países pobres têm o direito de proteger os sectores mais débeis da sua economia. Os países ricos não têm o direito de impor a liberalização dos mercados –
e muito menos de usar o seu estatuto de dadores para forçar a sua adopção pelos países pobres.
Dizer que o comércio internacional não tem regras é, reconheçamos, uma injustiça para a OMC. Na verdade, há uma regra fundamental: a do mais forte. Desde logo, no acesso ao mercado: os países ricos taxam as importações de países pobres, em média, a um nível quatro vezes superior ao que praticam nas importações de países industrializados. No sector agrícola, a U.E. e os E.U.A continuam a subsidiar os seus agricultores (quebrando promessas feitas), que assim esmagam os preços dos 900 milhões de pobres que habitam nos países em desenvolvimento. Na área da saúde pública, continuam as restrições à utilização de medicamentos genéricos. Por fim, a U.E. e os E.U.A. insistem no tema do investimento estrangeiro, procurando uma vez mais abolir qualquer capacidade dos países pobres para proteger os seus investidores nacionais.
O Comércio Justo defende que Cancún não deve ser mais um passo no sentido de uma liberalização que só serve os mais fortes. Num mundo perfeito, em que todos tivessem as mesmas oportunidades, esse seria o caminho. Há que dotar os países em desenvolvimento de ferramentas para consolidarem as suas economias, antes de abri-las sem restrições ao investimento estrangeiro. Há que partilhar, antes de exigir.
Vitor Simões
Jornalista. Coordenação Portuguesa de Comércio Justo
Sem comentários:
Enviar um comentário