quarta-feira, setembro 17, 2003

DEPOIS DA CIMEIRA

Cancun: O descarrilamento da conferência da OMC
Irene León (15-9-2003) - América Latina em Movimento

Sem se ter avançado em nenhum ponto, terminou a conferência da OMC em Cancun...

A conferência, que deveria ter como corolário a obtenção de acordos relativos à agricultura, não logrou obter consenso, essencialmente pela divisão existente entre países ricos (especialmente os EUA e a UE) e pobres – muitos deles aglutinados no G21; estes últimos optaram por uma postura firme defensiva, logrando resistir e acordar posições, apesar das enormes pressões e mesmo ameaças que foram exercidas contra eles. Desde o início, EUA e UE tentaram adiar o tema da agricultura, nomeadamente a questão dos subsídios, e quiseram abordar apenas os temas de Singapura. O G21 insistiu na agenda do desenvolvimento proposta previamente em Doha.

Mais tarde, os países ricos tentaram utilizar a agricultura como moeda de troca para a introdução dos novos temas. O chefe das negociações dos Estados Unidos, Robert Zoellick, com uma atitude arrogante, disputou possíveis concessões na agricultura em troca do acesso aos mercados.
A confusão não se limitou à temática das negociações, mas passou às regras do jogo, cuja indefinição fez com que um grupo de mais de 60 países pedisse a sua transparência.
Durante as negociações chegou a ser do domínio público a manipulação, chantagem e ameaças aos países do sul, que foram literalmente encostados à parede em reuniões privadas. Finalmente, o feitiço virou-se contra o feiticeiro e quem terminou contra a parede foram as grandes potências, que recusando a sua derrota, transferiram a responsabilidade do fracasso para os países pobres.
Depois de horas intermináveis à volta de um rascunho de declaração, onde mais de 60 países insistiram em retirar o temas dos investimentos, a declaração nunca chegou a ver o texto aprovado.

A dignidade do Sul

Pela primeira vez nas reuniões da OMC, surge a voz do Sul com tal força e firmeza, que foram o Uganda e o Quénia que encabeçaram o abandono do plenário final, precipitando o seu término.
A importância do sucedido é ainda maior, já que é instaura um precedente histórico: o aparecimento do G21, liderado pela China, a Índia e o Brasil, não só foram cruciais para o descarrilamento da conferência como a sua própria criação evidenciou a clivagem de interesses entre o Sul e o Norte, e que por isso, a necessidade de fortalecer a agenda política do Sul, o que por si é já um avanço na instauração de práticas mais democráticas dentro da OMC e fora dela.
Por isso, os EUA tentaram fracturar esta iniciativa, com a proposta de mudar o estatuto do Brasil, da Índia e da China, que passariam de “sub-desenvolvidos” a “países exportadores”, o que seria considerado como uma espécie de promoção (tipo passarem da 2ª divisão para a divisão de honra).
De qualquer forma, pela primeira vez houve uma resistência organizada que refreou a prepotência do império e isso já pode ser considerado como uma vitória sem precedentes.

Os povos é que têm razão, pá

Os movimentos sociais, por um lado, consertaram uma volumosa agenda de actividades que combinaram reflexões e desenvolvimento de propostas alternativas, em todos os temas relacionados com a OMC, e mobilizações populares para tornar visível a ilegitimidade da OMC, já que de momento apenas defende os interesses dos países mais ricos e das multinacionais.
Por isso, o fracasso da Conferência foi assumido como um triunfo da razão. Depois de uma semana agita por centenas de Fóruns temáticos e mobilizações diárias encabeçados pela “Via Campesina” que se estenderam por todas as ruas, o triunfo foi amplamente festejado.
Adicionalmente, os movimentos tiveram a sua própria vitória, já que apesar da repressão e do cenário de guerra montado em redor da conferência, os movimentos conseguiram fazer passar os seus pontos de vista, nomeadamente a vontade de manter à margem da OMC a Agricultura e a Alimentação; chegaram mesmo a derrubar os muros de protecção no dia 10 e 13.
Nas palavras de Juan Tineym (Via Campesina), o derrube dos muros e o fracasso das negociações “comprovam a força da solidariedade e da vontade de mudança dos movimentos”. Tuney disse ainda que o derrube do muro no dia 13 simbolizou a ruptura “do muro da fome e da miséria e anuncia que poderemos construir um mundo sem exploração, juntos e juntas”.

Artigo traduzido e adaptado por PP daqui.

Tudo sobre esta cimeira aqui (espanhol).

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