sexta-feira, julho 25, 2003

Social-democracia de Esquerda

Como estamos num período de intervalo, onde o FSP está em banho maria, cá vai mais uma pista de reflexão. Esta é mais uma crónica de Miguel Vale de Almeida que pode ser encontrada aqui.

PP

"Social-democracia de Esquerda

Em Portugal (por causa da vitória da direita ) ou em França (por causa do susto LePen), a esquerda esperneia de aflição. Porquê? Porque, lá bem no íntimo, sente que tem culpas no cartório. Pouco importa qual a explicação (ou o bode expiatório): ora é a esquerda moderada que governa ao centro e se submete à globalização neo-liberal; ora é a “extrema”-esquerda que é sectária e divisionista; ora são os comunistas que não percebem em que mundo (já não) vivem. Explicações tão opostas e bodes de tão diferentes cores e pelagens não auguram nada de bom, a não ser a baralhação geral.

No campo do establishment, os funcionários do bom senso esfregam as mãos. José Manuel Fernandes, director do Público, compraze-se com as platitudes do costume: o problema da esquerda seria não perceber que o par democracia liberal / economia de mercado é a melhor coisa que há apesar dos seus defeitos. Esta postura a la Churchill dá imenso jeito: as coisas eventualmente melhorarão, mas até lá é bom que fiquem como estão.

Continuo a achar que ser de esquerda é, no fundo, achar que as coisas não devem ficar como estão; e que as coisas podem deixar de ser como são. Esta postura faz-me sentir desconfortável com duas posições correntes: desde logo, com a direita, et pour cause; e, depois, com grande parte da esquerda onde insisto em navegar, pela sua insistência em se recusar a pensar nas potencialidades do actual sistema, e pela casmurrice com a ideia utópica de transformação radical da sociedade e da economia.

Eu (e muitos outros, espero) embirro solenemente com o demissionismo fatalista do mainstream PS face à democracia liberal e à economia de mercado que temos; mas embirro tanto ou mais (porque se deve embirrar mais com os que nos são próximos, e ser mais exigentes em relação a eles) com a retórica utópica e revolucionária (mesmo quando congelada criogenicamente). Aqui vai, então, a bomba (ah, o meu fundo anarquista!): também acho que a democracia liberal é a coisa melhorzinha; também acho que a economia de mercado está mais próxima do comportamento económico das pessoas e sociedades do que de uma criação historicamente relativa chamada capitalismo.

Esperem, não me matem ainda. É que eu acho que não é nada disto que PSs e Fernandes dizem. Pela mesma razão que, em Portugal, o PSD usurpou indevidamente o termo “social-democracia” e o PS finge ter feito o trabalho de actualização de ideais socialistas que nunca teve. O que eu desejaria que a esquerda pensasse – e depois fizesse – é outra coisa. Primeiro: garantir que, em Portugal, a democracia liberal funciona; garantir que, em Portugal, a economia de mercado funciona. Em Portugal temos um travesti de democracia liberal mascarando o patriarcalismo e as cunhas; e dois ou três grandes grupos económicos, maus gestores e péssimos serviços. Segundo: batalhar para que a democracia liberal se aprofunde e multiplique em formas de cidadania mais completa em todos os sectores da vida: trabalho, família, ambiente, sexualidade, etc., e não se fique apenas pela ritualidade pobre do parlamentarismo; e batalhar para que a economia de mercado seja verdadeiramente regulada no sentido de garantir serviços públicos de qualidade, uma fiscalidade justa e uma redistribuição o mais equitativa possível (as social-democracias nórdicas confirmam que é possível acumular riqueza e ao mesmo tempo distribui-la).

Ora, isto, nem PSDs e PSs, por um lado, nem o PC, por outro, ou o Bloco (ainda por outro) dizem. Nas actuais circunstâncias, em que a esquerda está de pousio, talvez se devesse debater a sério estas questões: questões pragmáticas, questões tácticas e estratégicas, é certo, mas também questões ideológicas. O meu sonho era que, vindos do PS, do PC ou do Bloco, se juntassem (como tendências nos partidos, como think tanks, como partidos ou movimentos, pouco importa) pessoas que se assumissem como Sociais-Democratas de Esquerda – gente apostada na crítica feroz ao demissionismo centrista e oportunista, mas também farta da sobrevivência do vírus utópico-revolucionário (posso ser mauzinho e preconceituoso?: nem betos nem freaks).

Às vezes as coisas mudam não com novas e totais invenções, mas com recuperações de coisas antigas que se perderam. E uma delas é a social-democracia. A sério. De esquerda. Quem alinha?"


Miguel Vale de Almeida, 6 de Maio de 2002

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