quinta-feira, julho 03, 2003



Jogos de Linguagem

Talvez por causa da guerra – uma situação propícia à manipulação da informação – tenho andado sensível aos pequenos truques, mudanças e subtilezas de linguagem nos media. Tudo começou, portanto, com a guerra. Só ao fim de alguns dias me apercebi que os locutores – e, portanto, as redacções e quem toma decisões editoriais – usavam e abusavam da expressão “coligação”. Para o senso comum (neste caso, também bom senso), o Iraque foi invadido pelos americanos. Em bom rigor – o que se esperaria do jornalismo – o Iraque foi invadido por forças americanas e britânicas. Trata-se tecnicamente de uma coligação, mas entre duas forças e algumas migalhas (australianos, etc.), sendo que uma das forças é obviamente esmagadora e teria avançado para a invasão com ou sem o Reino Unido. Assim, falar em “coligação” significa reproduzir a propaganda desejada pelos EUA: dar a ilusão de que o mundo inteiro estaria a favor da invasão, e de que os EUA não estariam a fazer mais do que aplicar decisões da ONU perante a “cobardia” da Velha Europa.

As coisas não se ficaram por aí. Nem a expressão “libertação”, nem a expressão “democracia” foram alguma vez questionadas ou matizadas. Foram compradas directamente no supermercado de ideias do Pentágono. O que se vai instalar no Iraque é uma “democracia”, e isto é dito sem qualquer hesitação face a uma espantosa contradição: pela primeira vez na história da Humanidade uma democracia será instalada à força. Não fosse o desprezo a que o neoliberalismo educacional tem votado as humanidades e as ciências sociais, ficar-se-ia espantado com tanta ignorância da História e da Ciência Política. Pois o que o vice-rei Gardner e os americanos estão a fazer no Iraque - para quem saiba um pouco de História e interprete aquelas palavras paternalistas saídas da boca de quem impôs o seu poder pelas armas - é a usar um discurso colonialista numa situação colonial. Troque-se “democracia” e “liberdade” por “pacificação” e “civilização” e temos o discurso de um missionário ou governador colonial. Para completar a semelhança, esse discurso é proferido face a uma situação cultural e social absolutamente abstrusa para a mente dos colonizadores: é só esperar umas semanas para ver emergir o caos do fundamentalismo e do tribalismo, eventualmente apaziguado à força por fantoches como Chalabi, fugido da Jordânia depois de ter desviado milhões de dólares num negócio bancário e financeiro duvidoso, e que agora se refugia do seu insucesso popular num dos palácios do ex-ditador. Ah, é verdade: o ditador liderava um “regime”, palavra espantosa, transformada em insulto, habilmente conotada com a adjectivação que lhe falta (“regime fascista”, regime totalitário”), como se os EUA ou qualquer outro país não tivessem um “regime”.

Em Portugal, esta coisa da guerra deu azo a diatribes violentíssimas entre apoiantes e opositores. Na realidade, o grau de ferocidade não se deve a uma especial preocupação dos portugueses com as questões internacionais. Deve-se a uma circunstância social curiosa e a uma outra, histórica, mais preocupante. A primeira é que os jornais ficaram nas mãos de uma geração das elites nacionais que em tempos esteve na extrema esquerda e foi guinando para a direita. A segunda é que nunca em Portugal se “ajustaram contas” depois da “normalização” do 25 de Novembro. Directores e editorialistas de jornais e TVs têm agora a oportunidade de proclamarem a sua conversão e de atacarem aqueles que paranoicamente vêem como sendo eles próprios caso não se tivessem convertido. Só isto explica como pode alguém comparar a “libertação” do Iraque ao 25 de Abril português, uma barbaridade tão grande como quando Saramago comparou a situação palestiniana ao Holocausto. A maneira como a direita portuguesa alinha com tudo o que venha de Washington é própria de cristãos novos, mais papistas que o Papa. Só isso explica, também, que possa haver uns rapazolas como o líder da Juventude do PP evocando como luta pela “liberdade” o “sofrimento” passado pelos militantes do CDS no período a seguir ao 25 de Abril. A direita sempre interpretou a obra de Orwell como sendo um ataque ao estalinismo. Nunca percebeu que era um ataque a toda a manipulação dos sentidos da linguagem por qualquer poder – justamente o que a direita agora faz, como quando tenta equivaler a “liberdade” no mercado (geradora de desigualdades) com a liberdade política (só possível com o incremento da igualdade de oportunidades).

Miguel Vale de Almeida, 25 de Abril de 2003

(continuação da crónica de Miguel Vale de Almeida aqui)

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