O papel dos partidos
Recentemente têm surgido em diferentes fóruns, e em grande número de debates e discussões de índole cívica e política, outras tantas vozes a questionar o papel, e até a legitimidade, dos partidos políticos na participação/organização de tais eventos.
Parece-me ser isto, no essencial, um bom sinal. Um sinal de que a sociedade civil, quer na expressão do seu movimento associativo, quer por via da opinião individual dos cidadãos, questiona uma certa “prioridade” das instituições partidárias tradicionais, que vinha sedimentando à sombra do deserto de iniciativa criado pela governação neo-liberal dos partidos detentores do poder.
Neste contexto, a crítica ao oportunismo partidário, aos jogos de bastidores, às tentativas de instrumentalização de movimentos, à imposição hegemónica e artificial de orientações, cores e bandeiras, nos mais diversos momentos, tem sido não só uma crítica justa, mas também um gesto que é condição da própria natureza livre, indomável até, de todos aqueles que acreditam que um outro mundo é possível.
Dito isto creio no entanto ser necessário, por ser justo, acrescentar algo mais. A legitimidade dos partidos participarem, decidirem, mobilizarem, etc.., não é qualitativamente diferente da de qualquer outro movimento. A generalização da ideia de que tudo o que é partidário é intrinsecamente mau, corresponde a uma simplificação na linha de um maniqueísmo muito caro a uma certa direita, que explora sem pudor, e com mal disfarçada intencionalidade, o descontentamento e desinteresse crescentes dos cidadãos pela política e pelos partidos.
Importa pois separar águas e analisar a natural complexidade do problema. De facto os partidos políticos não são todos iguais, e se é certo que não creio que existam “partidos de vanguarda”, pelo menos na acessão ascética da expressão no vernáculo estalinista, há uns claramente melhores do que os outros.
Quais? Ou qual?
Não é esse o ponto. O ponto é que a virulência indiscriminada e sem critério dirigida contra os partidos contribui objectivamente para lavrar o terreno da desmoralização e desalento dos cidadãos, onde colhe a direita mais conservadora e de instintos pouco democráticos.
Existe ainda uma outra espécie de “efeito colateral”. Parece instalar-se em alguns meios (muito sofisticados, muito cheios de certezas óbvias que só os outros – burros! – é que não descortinam), a ideia de uma certa vergonha, ou desconforto, por se pertencer a um partido. Como se isso constituísse por si só um atestado de menoridade cívica, ou reputasse de pouca credibilidade quem quer que fosse.
Na minha opinião a questão fundamental é a seguinte: que destino terão os movimentos sociais, hoje organizados em torno de visões alternativas do funcionamento da sociedade, quando as suas ideias tiverem eventualmente um apoio suficiente para serem postas em prática? Perguntando de outro modo: qual a consequência última da luta por uma determinada causa, ou ideia, ou objectivo concreto, senão a sua materialização por via do exercício de um qualquer poder, desejavelmente mais democrático, mais participativo, mais imaginativo? Uma vez criada a oportunidade, não se tornarão esses movimentos em partidos, no sentido em que como eles se constituirão em candidatos ao exercício do poder (por muito diferente que seja a concepção e a prática que têm dele)?
Sobre isto há evidentemente os que acham que o poder corrompe inexoravelmente, que o poder é intrinsecamente mau e não há nada a fazer. Na minha opinião isto corresponde a uma visão depressiva e sem saída. Pelo contrário, os movimentos e associações que hoje mundialmente se mobilizam, parecem ser mais animados pela necessidade de reconhecerem (e se reconhecerem entre si), em função não tanto do que querem, mas fundamentalmente daquilo que não querem. Nesta fase é portanto natural, e até em alguns casos indispensável, uma certa reacção contra os partidos do sistema, em particular contra um certo conservadorismo de alguns partidos de esquerda que pararam no tempo.
Isto, no entanto, é substancialmente diferente da atitude de julgar todos pela mesma bitola, e não reconhecer que a par do entusiasmo e do crescimento que anima muitos (novos e velhos) movimentos cívicos em Portugal, há um fenómeno paralelo no plano partidário, que alimenta e se alimenta espontaneamente deste rio, porque faz parte dele e com ele corre: o Bloco de Esquerda.
Noutros países, como em Espanha por exemplo, será diferente. O gesto fundador de construção de uma alternativa ao capitalismo, não arrancou à sociedade espanhola um movimento partidário à altura de tal expectativa. Mas em Portugal, mesmo com os erros que não se podem ignorar, e que se cometem sempre, esse movimento existe. Seria dramático (se não fosse até um tanto ou quanto patético) confundir a natural influência política do BE nos movimentos cívicos de esquerda (contra a guerra, pelo direito ao aborto, pelos direitos das mulheres, contra o racismo, pelos direitos das minorias lésbicas e homossexuais, etc.), com a postura de instrumentalização e aproveitamento político de outros partidos.
Isto sente-se, nas opiniões, na postura de organização de manifestações de rua, na adesão de independentes, na liberdade e intensidade com que se discorda... e na minha opinião é tão necessário referi-lo, como o são as críticas quando se presumem justas.
FMR
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