Nós, integrantes da Sociedade Latino-Americana de Economia Política e Pensamento Crítico, SEPLA, reunidos no Brasil, no VII Colóquio na Universidade Federal de Uberlândia (MG), e depois em sessão de trabalho na sede da Escola Nacional Florestan Fernandes (MST), em Guararema (SP), manifestamos:
1. A crise capitalista não terminou. Contrariamente ao que defendem os governos da região e boa parte do pensamento do stablishment e inclusive setores do movimento popular e da esquerda, a crise capitalista em curso continua descarregando seu custo sobre os trabalhadores e os povos em todo o mundo. São os um bilhão e vinte milhões de pessoas que passam fome, reconhecidos pela FAO; ou os um bilhão de trabalhadores com problemas de emprego e ingresso, segundo a OIT. O governo dos Estados Unidos aprofunda o déficit estrutural, comercial e fiscal, e continua demandando ao seu Parlamento a ampliação de sua capacidade de endividamento público, exacerbando seu caráter de grande devedor mundial e afiançando a debilidade global do dólar. Por sua vez, a Europa está acossada pela crise da periferia da União, aprofundando o ajuste nesses países e no leste. Existe o temor do descumprimento das dívidas públicas, especialmente na Grécia, o que afetaria a situação dos principais bancos alemães e franceses, e, em última instância, os norte-americanos. A União Europeia sofre a crise e coloca em discussão a estabilidade e o papel pensado para o Euro. O Japão incorporou os problemas derivados do terremoto e do tsunami aos problemas recorrentes da crise. O capitalismo desenvolvido, que explica 75% do produto global, dá conta de uma crise de longa duração e só atina para resolvê-la com ajustes em seus territórios e a uma fortíssima intervenção estatal de liquidez para salvar as empresas comprometidas. A crise se processa em ondas, primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa e no Japão para desenvolver um círculo vicioso de ajustes e intervenções estatais para a continuidade do capitalismo em sua etapa de transnacionalização. Essas gigantescas intervenções de gasto público para o salvamento induzem a uma imagem de solução no imaginário social.
2. A crise é mundial e afeta os nossos países. A nossa região é funcional à acumulação capitalista global, que demanda de nossos países recursos naturais e força de trabalho barata. A crise é econômica, financeira, alimentar, energética, ambiental, sistemática, integral, do conjunto da ordem civilizatória. A América Latina e o Caribe fazem parte desta crise da ordem capitalista. O aumento dos preços das matérias-primas que favorecem as contas nacionais de nossas economias é expressão da crise. Os preços sobem devido às condições do funcionamento transnacional da economia contemporânea. As crises estão entrelaçadas e a insuficiência de hidrocarbonetos no modelo produtivo em curso requer a utilização de produtos agrários para a produção de energia alternativa, encarecendo os alimentos. Os Estados Unidos utilizam boa parte de sua produção de milho para a geração de combustível. Ao mesmo tempo, a especulação com matérias-primas alimentares e minerais eleva os preços encarecendo os alimentos e insumos dos países atrasados e dependentes desses elementos. Este modelo produtivo é a causa da crise ambiental via emanação de gases tóxicos. Todo o conjunto, isto é, a dimensão especulativa, a transformação de produtos em energia, ou a contaminação, são parte essencial de uma ordem da produção definida pelas transnacionais da alimentação e da biogenética. O resultado em divisas serve para o pagamento de parte da dívida externa de nossos países, os pagamentos recorrentes de juros e uma crescente conta de remessas de utilidade ao exterior, com escassa incidência na melhora da distribuição do ingresso.
3. As economias dos países da América Latina e do Caribe crescem acima da média mundial. A afluência de divisas por exportações e o atrativo que é a região para o ingresso de investimentos externos diretos e para a especulação incide no crescimento econômico. A expansão econômica está significando a apreciação das moedas em muitos casos, e/ou em outros, a acumulação de reservas internacionais. Em ambos os casos, eleva-se a dívida interna para frear a inflação. Os dados das contas nacionais tornam invisíveis problemas estruturais de nossas economias. O crescimento esconde a reprimarização, a dependência na determinação dos preços das matérias-primas, e o fato de estar submetido ao ciclo dos preços, intensificação da transnacionalização pelo crescimento de investimentos estrangeiros e inclusive pela compra de terras. A realidade do crescimento econômico permite dissimular a continuidade de gravíssimos problemas sociais que atravessam a nossa geografia, o desemprego e o emprego precário, a flexibilização do trabalho e dos salários, a dessindicalização da população trabalhadora; agudizando os problemas da agricultura familiar, dos camponeses e dos trabalhadores do campo. O paradoxo é um crescimento econômico alheio ao desfrute da população empobrecida, a maioria da sociedade. O crescimento não é distribuído, embora que com recursos fiscais, fruto da expansão econômica, se apliquem políticas sociais compensatórias, que não tirarão a população “beneficiária” de seus problemas essenciais, mesmo quando lhes permite um ingresso de sobrevivência. O consumo suntuoso é a outra face com a qual constatamos que o padrão de consumo deriva do “modelo” produtivo.
4. O "neodesenvolvimentismo" é a política hegemônica. A ascensão das lutas populares nos anos 1990 deslegitimou as políticas de ajuste e reforma estrutural, mais conhecidas como neoliberais. Os governos resultantes da primeira década do século XXI na região deslocaram o discurso favorável ao neoliberalismo e às receitas do Consenso de Washington. Os partidos clássicos da ordem neoliberal foram deslocados por projetos políticos que impulsionaram um discurso crítico às políticas implementadas nas duas décadas anteriores, embora não se tenham modificado essencialmente as condições jurídicas institucionais que habilitaram a estrangeirização de nossas economias, a concentração e a desigualdade na distribuição do ingresso e da riqueza. As políticas em curso são qualificadas como "neodesenvolvimentistas" para a promoção do "capitalismo nacional", algo impossível em tempos de transnacionalização. Mesmo sendo discutível, o desenvolvimentismo dos anos 1950 a 1970 foi uma política aplicada por burguesias nacionais que alentavam um projeto de acumulação própria. A realidade de nossos dias é que as burguesias locais conseguem a acumulação tanto e enquanto sejam parte subordinada do processo de transnacionalização e reprimarização das estruturas produtivas. O "neodesenvolvimentismo" faz parte do discurso hegemônico em escala mundial depois da crise, pois já não se duvida da intervenção estatal, mesmo para salvar o capitalismo. A aposta "neodesenvolvimentista" é privilegiar a produção sobre a especulação, e, contudo, a especulação se mantém e desenvolve no mundo, sendo os produtos gerados em nossa região objetos de especulação financeira global. Além disso, a produção em desenvolvimento faz parte da dominação das transnacionais. O discurso "neodesenvolvimentista" tem muito pouco do desenvolvimentismo de quatro décadas atrás. Vale recordar a emergência do pensamento crítico latino-americano, a teoria da dependência, o marxismo, a teologia da libertação, que, em diferentes níveis e efetividade, denunciaram e desnudaram os limites da teoria desenvolvimentista. Hoje queremos reivindicar a validade e a atualidade dos propósitos da crítica para renová-los e recriá-los nas novas condições do desenvolvimento capitalista atual em crise.
5. O imperialismo intensifica sua iniciativa. A ofensiva do capital transnacional sobre a região se assenta na forte presença militar, seja com bases militares, com exercícios conjuntos com forças militares de nossos países, e com a reinstalação da IV Frota, assim como o alento a formas de desestabilização institucional, como o golpe em Honduras. Vale destacar as iniciativas de articulação institucional que prescindem da presença dos Estados Unidos, tal como a Unasul ou a Confederação Latino-Americana e Caribenha, claro que com os limites da presença de Estados fortemente comprometidos com o livre comércio e o projeto dos Estados Unidos, como é o caso da Colômbia. As classes dominantes da região pretendem incidir na situação política para deslegitimar a reivindicação e o conflito social, pretendendo com a ação dos meios de comunicação e seu poder econômico o restabelecimento de governos subordinados à lógica da liberalização e da dominação imperialista. Por isso, não deve surpreender que, na estratégia do poder mundial, se utilize a cumplicidade de governos do sul do mundo no G20 para reinstalar o papel diretor do FMI no sistema financeiro, e como instrumento privilegiado do ajuste e da reestruturação reacionária. A ação dos grandes capitais e dos principais Estados capitalistas e dos organismos supranacionais é expressão da ofensiva do capital para sair da crise e renovar as condições para a exploração, a acumulação e a dominação.
6. A resistência dos povos se amplia. Se na década passada a novidade de mudança política transitou por nossa região, a rebelião popular se estende pelo norte da África e na Europa. A luta dos países árabes e dos indignados do velho mundo se une à perspectiva de luta emancipatória dos povos de nossa América e marcam a perspectiva de que junto com a ofensiva do capital existem os povos em luta em busca de um futuro diferente, onde a crise não avança como recomposição do capitalismo, mas alimentando a perspectiva do outro mundo possível. É hora de unir os esforços dos dirigentes sociais e dos intelectuais críticos em torno de uma nova base programática que enfrente as medidas regressivas do capital e as ilusões produzidas pelas políticas assistencialistas. Para que isso seja efetivo se necessita dar um caráter anticapitalista e antiimperialista às lutas populares, ao mesmo tempo que renovar a organização social para articular uma perspectiva superadora da sociedade capitalista em crise. Isso implica, nesta etapa, na criação da Unidade Continental Contra a Transnacionalização, na medida em que as empresas transnacionais e seus sócios nacionais subordinados configuram e expressam o grande capital e o imperialismo, que explora os trabalhadores, destrói o meio ambiente e atenta contra a soberania dos povos.
Guararema, 26 de junho de 2011.
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