Há quem procure iludir as causas do declínio inexorável da Igreja Católica, a começar pela própria instituição. Todos os estudos, desde os anos 80, apontam para essa situação irreversível: a população que vai à missa ou as igrejas frequentadas cada vez mais por velhos; os jovens que se declaram católicos praticantes e estarem em pura desobediência quanto aos ditames da Igreja sobre o aborto; a pura hipocrisia, mesmo dos partidos de direita, quando se fingem hipnotizados pelas advertências eclesiásticas quando se debatem matérias como o aborto, a eutanásia ou a pílula do dia seguinte, tudo são factos sabidos e consabidos. É como se a sociedade aceitasse deixar a voz da Igreja num limbo, entregue às conveniências do laicismo.
A seguir ao 25 de Abril, houve quem pensasse que a Igreja fosse marcar passo pelos novos ideais democráticos. A Igreja estava inequivocamente comprometida com o salazarismo e pareceu inicialmente que o 25 de Abril seria um confronto com malta jacobina. Adaptou-se, mas esta civilização do dinheiro, do entretenimento e do conforto não lhe trouxe uma nova visão missionária.
Para quem duvide, a Igreja passou maus bocados nos séculos XIX e XX, em Portugal. Não gostou do liberalismo, apoiou o miguelismo, foi castigada com a extinção das ordens religiosas, circunscrita aos meios rurais, era monárquica e anti-republicana e jogou na paz proposta por Salazar. A imagem de uma igreja enfeudada aos ricos, obscurantista, sobranceira e intolerante perdura ainda nos nossos dias, e não só junto dos descrentes. Acresce, independentemente de ser vítima ou não da imagem que uma grande parte da sociedade lhe reserva, que a Igreja não se revela conformada com a mentalidade hipermoderna do nosso tempo, em que a economia em rede, a avidez
do consumo, a flexibilidade do trabalho são estados de alma pouco sensíveis ao pecado original e ao caldeirão do Inferno. A Igreja que comunicou magistralmente no tempo dos Apóstolos e das invasões bárbaras, habituou-se a uma comunicação incompreensível que roça o permanente castigo.
Chegámos a um momento, emocional e extremado, em que se está a debater a despenalização ou a manutenção da criminalização do aborto. Esperava-se que aqueles que invocam a Igreja para intervir no debate fossem francos, dialogantes e sérios. A amostra que vamos hoje ilustrar é decepcionante e ilustra os caminhos que se vão percorrer até ao referendo de 11 de Fevereiro, do lado da Igreja.
O Prof. João César das Neves é um ortodoxo assumido contra a despenalização e escreveu o livro "Aborto, uma Abordagem Serena", alegando estar pronto para um diálogo tranquilo e construtivo, respeitando a dignidade das pessoas que dele discordarem ("Aborto, uma abordagem serena", por João César das Neves, Principia, 2007). Vale a pena ler o livro para se entender que um professor universitário pode viver na Idade das Trevas, dizer as maiores baboseiras com postura científica e descarregar anátema sobre a defesa de que está do lado do magistério da Igreja.
Primeiro, o Prof. João César das Neves faz o favor de reconhecer a quem quer que seja o direito a uma debate franco, em cordialidade e consideração mútuas. Trata-se de atributos que ele vai reger chamando aos outros criminosos, agentes da permissividade, apoiantes do deboche animal, entre outros mimos. Aliás, este autor quer tudo esclarecido no início da sua tomada de posição: tudo quanto vai argumentar é uma defesa empenhada da posição da Igreja Católica. É um debate onde ele pode ofender pessoas mas com respeito e tranquilidade.
Segundo, a defesa do Prof. César das Neves é feita num país estranho de um continente estranho. Ele fala de uma proibição ou liberalização do aborto como uma atitude que marca para sempre o carácter legal de um país. É estranho nunca sabermos como já decidiram os outros países, já que não se acredita que seja pouco sério uma defesa de civilização de Portugal em oposição aos outros. Nunca se fica a saber se os valores de Portugal são aproximados aos da União Europeia, se Portugal quer ter um quadro de
direitos e de regras morais totalmente diferenciadas de todos os estados da União Europeia que despenalizaram o aborto, países que certamente cederam a forças fanáticas e turbulentas e a partidos políticos pusilânimes que cedem ao desejo sexual animal. Ou será que a Igreja Católica pretende um país orgulhosamente só onde as questões do aborto são para criminalizar em Portugal e descriminalizar em Espanha e em Itália, por exemplo. Não seria sério dizer o que se passa lá fora, em países católicos e protestantes, onde não se trava este debate retórico do desastre da civilização e como é que se vive na União Europeia este terrível deboche sexual animal?
Terceiro, o Prof. César das Neves fala em luta partidária como se a Esquerda quisesse libertar o homem, dando-lhe as vantagens de um harém sem nenhum dos inconvenientes e a Direita defendesse a vida num embrião e a mãe, podendo até acolher nas suas instituições os filhos indesejados e mal tratados. Trata-se de um discurso maniqueísta, acultural, caceteiro, democraticamente intolerável . Discute-se à Esquerda e à Direita a passagem de um embrião a um ser humano, é infamante acantonar na Esquerda o prazer venéreo, a reprodução artificial, a manipulação dos embriões, a redução da família a sexo puro, ou então o Prof. César das Neves é representante de uma das franjas da Direita e resta saber o que é que as outras franjas pensam
destas blasfémias. É uma ordem de ideias que procura diferenciar bons e maus, os que têm pudor e os que não têm, os que defendem a mulher e os que defendem o embrião, os que se opõem à eutanásia e os que a admitem em certas circunstâncias, etc.
Quarto, criminalizar ou despenalizar o aborto é um problema moral, jurídico, social, cultural, médico e biológico. É mentira dizer-se que a ciência (toda ela) reconhece que há um ser humano antes das 12 semanas, o valor da vida não é visto da mesma maneira por todas as comunidades religiosas e a visão da Igreja Católica não é partilhada consensualmente por todas as igrejas cristãs. O Prof. César das Neves concebeu dentro da cabeça dele um confronto de civilização que não existe em Lisboa, Madrid, Dublin, Berlim, ou Helsínquia. É mentira que a pílula do dia seguinte seja uma calamidade para a saúde como vem invocar. Antes de se dizerem certas coisas, os autores, a despeito do dogmatismo, deviam falar com os médicos e os laboratórios.
Quinto, a sociedade ocidental em que vivemos, para efeitos da criminalização ou da despenalização do aborto, é para este autor um mundo limitado ao discurso racional, onde nem sempre há prudência e virtude. Esta sociedade ocidental, desde o Século das Luzes vive na pouca vergonha, tolerante com o aborto, as uniões de facto, os homossexuais e pragas afins. Esta sociedade lembra a decadência do Império Romano, onde o Bloco de Esquerda em Portugal só pensa em sexo. Despenalizar o aborto é abrir a porta a outras liberalizações que podem chegar à eutanásia e até à pedofilia...
O extremismo e a intolerância, tem-se visto na civilização ocidental, saem sempre penalizados. Há quem não consiga ver que ultrapassamos o nazismo, o fascismo, o comunismo e outras formas de totalitarismo. Não sei, com toda a franqueza, o que ganha a Igreja Católica entrar nos debates sobre o aborto pela mão trauliteira do Prof. César das Neves. Os portugueses sim, saíram diminuídos.
BEJA SANTOS
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