quarta-feira, novembro 02, 2005

Os Portugueses I

A igualdade dos cidadãos prometida pela modernidade democrática testa-se na vida pública, no espaço público como diria Habermas. Testa-se em função das possibilidades declarativas e das disponibilidades de produzir declarações. Não apenas pela liberdade de expressão, mas também pela liberdade de comunicação e pela abertura da sociedade às declarações fracturantes, pois são essas que têm, ou podem ter significado.

A sociedade portuguesa, mesmo em alturas de necessidade de novas orientações políticas, como é actualmente o caso, mantém-se desconfiada perante as ideias, desagradada perante a diferença, incomodada pela conflitualidade, sofrega perante os ilusionismos, sejam eles futebolísticos, autárquicos, encenações de poder e de competência, sucessos materiais fáceis, na lotaria ou na habilidade do desenrasca, produto mais português que Camões, Amália ou o fado.

A política portuguesa é um ineludível exercício das classes dominantes que, de quando em vez, organizam performances pimba para votações à moda do festival da canção. A política do povo, alegadamente suberano, para inglês ver, continua a ser o trabalho, como no tempo da outra senhora. Por isso os textos de Eça de Queiroz mantém a actualidade apesar de serem muito mais que centenários: trabalho continua a ser sinónimo de emprego ou política de arranjismos partidários e de beneficência, sem que isso seja motivo de estranheza, quanto mais de escândalo.
O Estado tem sido, em Portugal, uma forma de ludibriar os seus próprios beneficiários: veja-se o
uso arbitrário que se fazem das leis, profusas e confusas o suficiente para que cada um use conforme melhor lhe convier, seja para daí tirar benefício seja para tirar desforço dos pategos, como a elite expressa o seu desprezo pelo soberano. As magistraturas, essas, ignaras e aristocráticas, ora dão ares de soberano absoluto ora de proletários, conforme os interesses próprios a defender. Nunca se sabe ao certo quais são os procedimentos legítimos, quem funciona dentro da legalidade, não há advogado honesto que possa calcular as hipóteses de sucesso de pleito judicial, pois isso depende de forças obscuras da ignorância, da intriga, da impunidade irresponsável dos responsáveis, dos conluios, dos preconceitos e também das conspirações. Por isso se costuma dizer “Não vou em grupos” para se declarar honestidade e transparência de procedimentos, que obviamente são raros em Portugal, país onde a informalidade é um dado cultural (e também político) fonte de inesgotável de efeitos surpresa para os estrangeiros mas também para os próprios autóctones. É a experiência do que se costuma chamar organizações muito bem desorganizadas, onde a hipócrisia e a fidelidade dão as mãos à maior das flexibilidades de coluna vertebral dos agentes, em cima e em baixo.
De repente, a corrupção torna-se um alvo dos discursos políticos, assim como a responsabilidade dos partidos políticos e dos políticos eles próprios. Talvez por isso os principais responsáveis pelo estado de coisas tenham decido dar a cara nas próximas eleições presidenciais. Não querem ficar mal na fotografia da história. Têm medo que algum candidato decida pôr o dedo na ferida. E contam com o gosto português pela delicadeza no trato entre as elites para que os ataques políticos contra os pais da Pátria, na sua presença, sejam contraproducentes a quem ouse avançar e dizer aquilo que circula no anedotário e nos emails da Internet.
Objectivamente, o maior deficit democrático em Portugal é o desprezo dos políticos pelos que não fazem política dentro dos partidos, todos eles com controlos internos fortes à circulação e legitimação de opinião – a erradamente chamada disciplina –, e a impossibilidade de quem tenha ideias ou experiências de vida para partilhar publicamente de aceder aos meios de exposição pública adequados, sem serem colonizados partidariamente. As excepções apenas confirmam a regra, e o volume da actividade cívica em Portugal, comparada com o que se passa em Espanha ou noutros países europeus, mostra que a legitimidade política das instituições de soberania não pode apoiar-se na sociedade, mas na autoridade bruta e brutal – veja-se o que se passa nos tribunais criminais e nas prisões, mas também com as nomeações para cargos de confiança e com a entrega da culpa a um funcionalismo público que aprendeu a viver desorientado pelo rotativismo e pelo compadrio. Isso é também evidente pela necessidade de cada governo mudar a cabeça da administração pública com pessoas da sua confiança, da desconfiança da função pública em relação aos políticos – seus inimigos públicos e patrões temporários, de quem dizem (pelas costas) cobras e lagartos ao mesmo tempo que (pela frente) manifestam subserviência canina e surripiam o que lhes calha na luva (tempo, dinheiro, equipamentos, poder, etc).

APD

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