Antes de passar ao tema incontornável da semana, quero aqui prestar homenagem sentida à grande mulher e figura cívica que foi Maria de Lurdes Pintasilgo – sempre é melhor começar por um tema que eleva os nossos pensamentos e emoções do que comentar acontecimentos de baixa política, embora de enorme gravidade. Conheci Maria de Lurdes Pintasilgo em finais dos anos 60, na alfabetização dos bairros de barracas de Lisboa pelo método Paulo Freire, no âmbito do movimento GRAAL, onde também pontificavam Nuno Portas, Manuela Silva e João Salgueiro. Foi uma experiência marcante, apesar das diferenças ideológicas que estalaram entre quem se situava na ‘ala liberal’ do regime e os grupos de jovens que se inclinavam para o marxismo e para uma luta aberta contra o fascismo e a guerra colonial.
Neste fértil choque de ideias, sobressaía o carisma de Pintasilgo, sempre aberta à compreensão dos novos tempos e praticando o diálogo frutífero entre cristãos e marxistas, aberto pelo célebre concílio Vaticano II. Foram tempos radiosos de esperança, marcados por filmes como “As sandálias do Pescador” e homens de coragem como os padres Felicidade Alves, Mário, Francisco Fanhais e outros que desafiaram a bolorenta aliança entre Salazar e Cerejeira; foi a década do Maio 68 e da Primavera de Praga que, tendo acabado em desilusões, permanecem como marcos sobre os quais se erguerão as alamedas do futuro de que falou Salvador Allende, na sua última mensagem.
Reencontrei Pintasilgo mais de uma década depois, em Aljustrel, numa conversa tão longa quanto o permitiu a azáfama da campanha presidencial de 1985. O tema foi a democracia participativa – que ainda hoje faz sorrir alguns efémeros detentores do poder na nossa terra – e a urgência de aproveitar as virtualidades originais da Constituição, marcada pela revolução do 25 de Abril. Sim, porque para Pintasilgo, Abril escreveu-se com R grande e foi vivido com enorme exaltação, afinal muito mais importante que todos os cargos oficiais que desempenhou em Portugal e no mundo de que soube ser cidadã. É significativo da pequenez dos dias que correm que a primeira mulher a exercer o cargo de primeira-ministra de Portugal não tenha tido funerais de Estado – atitude que não mereceria a Maria de Lurdes Pintasilgo mais do que o largo sorriso que sempre vai perdurar nas nossas memórias.
Mas como já vou a mais do meio da crónica, depois de ter falado de uma mulher que soube voar ao nível das águias, cabe-me agora o doloroso dever de regressar ao cacarejar das galinhas domésticas. O discurso presidencial da passada sexta-feira daria, quando muito, um filme da série B com o título “A escolha de Sampaio”. Porque duma escolha se tratou: entre um golpe palaciano e a democracia exercida pelos seu único detentor – o povo; entre o continuísmo “laranja” e a maioria que, a 13 de Junho, infligiu o maior castigo eleitoral de sempre à direita coligada; entre a maioria clara que exige eleições e recusa um ‘governo da treta’ e a minoria de poderosos - os empresários do grupo Carlyle, os banqueiros e as confederações patronais - que prefere um arranjinho com Santana e Portas, apadrinhado por Sampaio. Na hora da verdade, o ainda PR optou por sair não pela esquerda baixa – como diríamos em linguagem teatral – mas pela direita rastejante.
Nada que possa constituir surpresa, depois do Código do trabalho, da lei dos disponíveis da função pública e da guerra do Iraque, em que Sampaio passou da posição de Pilatos à de cúmplice activo, com o prolongamento da missão da GNR, sem excluir um futuro envio de tropas. E a rendição de Sampaio constitui também um rude golpe para o PS, interpretado pela demissão de Ferro Rodrigues e, com maior clareza, por Ana Gomes, ao declarar-se arrependida de ter votado em Sampaio. É este o sentimento de muitos eleitores socialistas que não se coíbem de o expressar – e é bom que tirem daí as devidas consequências, quando se insinuam candidaturas presidenciais como a do ‘fugitivo’ António Guterres ou outras do mesmo calibre.
A reacção dos barões do PS, contudo, vai em sentido oposto à revolta que grassa no seu eleitorado: ganha forma a candidatura do novo D. Sebastião, Vitorino, regressado de Bruxelas por troca com Durão Barroso. Resta acrescentar que o tão elogiado comissário é um entusiasta de Schengen e da Europa policial, do eixo euro-atlântico e nunca ergueu a voz contra a invasão do Iraque pelos EUA. Obviamente, não é com amigos destes que os trabalhadores e o povo português podem contar para resistir à ofensiva populista da direita e evitar que esta República entregue a bananas se transforme, de vez, numa república das bananas, onde já só falta AJJ como próximo inquilino de Belém…
Alberto Matos
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