segunda-feira, maio 03, 2004

Free Culture - Liberdade de Cultura

“Free Culture” traduz-se facilmente em português por “Liberdade de Cultura”. Assim, se esta ideia de defender o direito à Cultura tivesse partido da Lusofonia não se teriam gerado os equívocos proporcionados pela expressão anglo-saxónia “Free Culture”, deturpada pelos seus detractores como “Cultura Grátis”, como uma pretensão a transformar a cultura em “brindes” anónimos que nos chegam com o pacote de detergente. Alguém sugere que “Liberdade de Expressão” implique mais que isso, “liberdade” de “expressão”? Liberdade de cultura deverá ser vista essencialmente como o direito a construir sobre o património cultural da Humanidade.

O termo “Free Culture” foi lançada por Lawrence Lessig num livro com o mesmo título. LL, um dos 100 advogados mais influentes dos Estados Unidos e um dos 50 destacáveis de 2002 (pela Scientific American, SciAm), tem sido uma das vozes mais importantes na promoção duma cultura livre de amarras, do Software Livre ao acesso público à literatura científica (de que é exemplo a Public Library of Science - PLoS, organização sem fins lucrativos que promove o livre acesso ao mundo da ciência).

A “Liberdade de Cultura” é um requisito essencial na promoção da criatividade e da inovação - “Creativity and innovation always builds on the past”, em português: é um desperdício perder tempo a re-inventar a roda. Mas LL é contumaz em afirmar que também a “propriedade intelectual” é essencial: “A free culture is not a culture without property, just as a free market is not a market in which everything is free”. A questão estará no tipo de valores que queremos fazer vingar na nossa sociedade: um mundo de copyright promove a cópia pirata e o esquecimento da autoria, mas se “to be or not to be” não fez Shakespeare rico, a verdade é que esta mil vezes repetida citação lhe garantiu uma eternidade gratuita; se fosse hoje, essa fama seria também o garante de outras oportunidades, exemplificando bem que existem alternativas a deixar a compra e venda de ideias comandar o mundo. E, que se saiba, a reprodução (revista e aumentada e sem pagamento de direitos...) das suas obras pelas aldeias do seu tempo nunca o entristeceu a ponto de perder a inspiração...

Lessing alega que tudo começou em Inglaterra quando em 1710 se instituiu um período de protecção de 14 anos aos Direitos de Autor. Entretanto surge, nos anos 40 desse sec XVIII, uma série de editores escoceses a pretender re-editar os clássicos da literatura; os influentes editores ingleses, em pânico, levam o caso a tribunal, conseguindo que os direitos de autor perdessem o prazo: "Copyright is forever!". Em 1774, num famoso caso dos tribunais ingleses, “Donaldson v. Beckett”, é declarado nulo o copyright em favor da liberdade de cultura: pela primeira vez na História se vêem as obras de Shakespeare (um património da Humanidade) livres do monopólio dos livreiros ingleses. Terá nascido aí o conceito de disponibilização irrestrita da cultura.

Aqui podem ler/ouvir como a questão dos Direitos de Autor se tem deturpado desde esses idos anos de 1700, numa interessantíssima palestra proferida por LL (o ficheiro demora algum tempo a descarregar, mas vale muito a pena; é uma palestra de meia-hora, mas do lado direito em baixo há um botão de pausa, [||] que permite parar para continuar mais tarde). Ele sugere, por exemplo, que o “código” de aplicações de software não é mais que o equivalente ao “código” das obras de Shakespeare (é permitido e considerado “normal” desmembrar e analisar uma peça de Shakespeare – o que tem ensinado gerações e inspirado incontáveis obras de arte). LL remete ainda para um herói de infância, Walt Disney, que em 1928 criou o rato Mickey, segundo o próprio inspirado no “Steamboat Bill”, uma personagem dum então recente filme de Buster Keaton. LL enumera mais uma série de filmes Disney que refazem estórias dos Irmãos Grimm ou se baseiam em filmes mais ou menos conhecidos do público. Até que, subitamente, a (então) gigante Disney, Inc. declara o rato Mickey propriedade sua e sujeita a rigorosos Direitos de Autor... Etc. Assistam, de graça, à palestra de LL ou leiam, de graça, o livro "Free Culture".

Outros sítios interessantes:
a Creative Commons, uma iniciativa destinada a divulgar a utilização de ideias/conceitos livres de custos (mas não isentos de citação) no sentido de promover a multiplicação dos pães. Até porque, como Disney afirmou, o rato Mickey não nasceu do nada...
e a Public Knowledge, uma organização que advoga um tratamento justo e um compromisso entre o copywrite e as políticas relativas à tecnologia.

mpf

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