Ontem, 25 de Abril, celebrámos a nossa libertação há trinta anos da ditadura fascista. Estudava então matemática na Faculdade de Ciências de Lisboa. Sem a revoluçao de Abril, as minhas escolhas quando obtivesse a licenciatura em 1975 teriam sido a guerra colonial ou a fuga para o estrangeiro, como quantos outros. Com toda a minha geração, devo aos capitães de Abril uma dívida impagável. Não só tiveram a extraordinária coragem de atacar um regime que parecia dominar todos os pensamentos e todas as acções, como também tiveram a extraordinária maturidade de passar rapidamente o poder a representantes eleitos.
Pouco depois do 25 de Abril, alguns dos cientistas e intelectuais exilados voltaram, trazendo a esperança de que Portugal ganharia a seu tempo uma posição de igual em ciência, tecnologia, e cultura com os seus parceiros europeus. Quando saí de Portugal em 1977 para fazer o meu doutoramento, não imaginava que saía para sempre. Mas as muitas dificuldades que tive então com a burocracia oficial mostravam já que o fungo autoritário ainda infestava profundamente as instituições, se bem que escondido pela fachada democrática. Quando acabei o doutoramento em 1982, tinhas várias ofertas de lugares de investigação no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em Portugal, só uma vaga sugestão de um lugar universitário possível quando as engrenagems oficiais finalmente produzissem um concurso. Entre uma oferta real de emprego na minha especialidade e uma promessa vaga, a escolha foi simples.
Há poucos dias, a Senhora ministra da Ciência anunciou uma iniciativa para trazer cientistas portugueses excepcionais de volta ao país por períodos de dois anos. Os termos da oferta não são ainda claros. O que é claro, no inimitável estilo burocrático português, é o critério de habilitação: ou 100 artigos publicados nas revistas incluídas no catálogo ISI, ou 50 artigos e dez doutorados. A ministra justifica-o com o argumento de que este é "o modelo Americano de excelência". Curiosamente, em muitos anos como avaliador de propostas de investigação para a National Science Foundation, de candidatos a vários graus de professor nas mais prestigiadas universidades dos Estados Unidos, e como chefe do departamento de Computer and Information Science da Universidade da Pennsylvania, nunca vi tal critério. Todos os peritos consultados nessas avaliações sabem que a frequência e local de publicação científica variam de disciplina para disciplina, e com as mudanças em cada disciplina. Disciplinas novas ou estudos interdisciplinares, onde as ideas mais importantes muitas vezes surgem, avançam muito mais depressa do que a criação de revistas e a sua inclusão em catálogos como o ISI. Em novas áreas em fase de crescimento explosivo como a teoria da computação, a inteligência artificial, e a bioinformática, conferências altamente selectivas tomam o lugar outrora ocupado por revistas. Contar os artigos em revistas "aprovadas" não pode substituir uma avaliação cuidadosa da qualidade e do impacto duma ccarreira de investigação. Essa avaliação é difícil e falível, como é sempre a "peer review". Mas não temos nenhum método melhor, como não temos nenhum método melhor para governar sociedades modernas do que a democracia representativa, mesmo com todas as suas falhas e irritações.
Mais uma vez uma burocracia centralista e invertebrada combina literalismo obtuso com provincianismo (como já retratava Eça de Queiroz há mais de cem anos) para justificar a sua incapacidade de criar uma cultura de competência nos trinta anos desde a nossa libertação. As pobrezas da ciência, da tecnologia, e da cultura em Portugal não vão ser curadas com formalismos ridículos. O que é preciso é a coragem de definir prioridades nacionais, de criar e proteger orçamentos estáveis, e de descentralizar contratação, promoções, e tratamento salarial. Acima de tudo, é preciso reconhecer que a avaliação rigorosa não é incompatível com dar responsabilidade às pessoas e ter confiança nas suas decisões. A falta destas medidas de bom senso explica em boa parte o crescente atraso de Portugal relativamente à Espanha e à Grécia, cujas libertações se seguiram ao 25 de Abril e muito beneficiaram do seu exemplo pacífico e tolerante. O que nos mostra, nesta data em especial, quanto foi desbaratado da oportunidade ímpar que os capitães de Abril nos abriram, sem pedir nada de volta.
Confesso finalmente que ainda não tenho cem artigos no ISI. É tempo de voltar à minha investigação, senão nunca mais me habilito ao prémio burocático da Senhora ministra da Ciência.
Fernando C. N. Pereira
Nota: Fernando C. N. Pereira é professor catedrático na Universidade da Pennsylvania em Philadelphia, chefe do seu departamento de "Computer and Information Science" (Informática), e "fellow" da American Association for Artificial Intelligence. Também dirigiu departamentos de investigação nos AT&T Bell Labs e no SRI International, um instituto de consultadoria científica e tecnológica. Desde 1975, publicou 77 artigos e um livro, e recebeu várias patentes em linguagens de programação, inteligência artificial, processamento da fala, linguística computacional, e pesquisa de texto.
Sem comentários:
Enviar um comentário