domingo, abril 25, 2004

Abril é Revolução

Na semana em que se comemoram os 30 anos do 25 de Abril, multiplicam-se os debates e as evocações duma data que já ocupa um lugar na História e é, em simultâneo, suficientemente próxima para despertar as paixões de quem a viveu e pelas marcas que deixou no quotidiano de todos os portugueses, mesmo os que disso não tenham consciência. Não admira que todas as forças políticas se manifestem, a começar pelo governo PSD-PP que se desdobra em inaugurações e procura marcar terreno ideológico com os célebres cartazes “Abril é Evolução”.



Para disfarçar a grosseira falsificação histórica, os arautos mais lúcidos da direita vêm deitar água na fervura, dizendo que os cartazes homenageiam a evolução que só foi possível graças… à revolução! Fica apenas por explicar porque caiu o famoso R, justamente na data em que a revolução comemora 30 anos. A evolução de que falam os cartazes remete ainda para a célebre “evolução na continuidade” - ainda hoje estaríamos à espera que Marcelo Caetano anunciasse a democracia numa “conversa em família”… Quando muito, teríamos uma transição “à espanhola”, sem os sobressaltos duma revolução que “destruiu a economia e destroçou a pátria”, segundo os saudosistas da extrema-direita presentes no próprio governo, cujo verniz democrático estala de cada vez que abrem a boca para destilar veneno sobre a descolonização e o próprio 25 de Abril.



Estes pontos de vista, derrotados pela História, procuram explorar o descontentamento actual e dão alento a fenómenos como o racismo e a xenofobia. Nenhuma democratização era possível com uma guerra colonial em curso – foi esse o verdadeiro “nó górdio” das tentativas reformistas de Marcelo Caetano, apoiadas por Sá Carneiro e pela chamada “ala liberal” do regime. E não houve processo de descolonização orientado e controlado – como ressalta das recentes entrevistas de Almeida Santos e Vasco Lourenço – mas sim o consumar da derrota política e militar do colonialismo, cujos soldados e oficiais subalternos já se recusavam a combater. A tragédia não foi a descolonização, mas sim a colonização, o tráfico de escravos e o trabalho forçado dos chamados indígenas!



Quando evoca o exemplo de Espanha, onde a polícia política não foi desmantelada e a censura se tornou apenas mais subtil – como se viu no recente 11 de Março, com a manipulação de jornais e da televisão pública pelo governo de Aznar - alguma direita revela a sua preferência por um modelo de “democracia musculada”, incompatível com o 25 de Abril e com a Constituição que dele emanou. O que mais lhes doeu é que um golpe de estado, que pôs fim à mais longa ditadura do século XX, tenha aberto as portas a um processo revolucionário cuja principal conquista foi o povo descer à rua e aprender a formular as suas próprias reivindicações, tomando em mãos os seus destinos - mesmo que lhe tenham roubado o sonho...



Esses 580 dias - do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975 – são dos momentos mais exaltantes da História de Portugal e hão-de fornecer sempre novos motivos de estudo aos investigadores. Em larga medida, o avanço revolucionário de 1975/75 constituiu uma resposta mais que legítima às intentonas reaccionárias do 28 de Setembro 74 e do 11 de Março 75, por parte duma burguesia financeira, industrial e agrária habituada a décadas de proteccionismo e à lei do chicote, incapaz de conviver com regras mínimas da democracia. Até que o quarto governo provisório decretou as nacionalizações, com o apoio de todos os partidos (incluindo os que integram o actual governo) e os assalariados rurais do Alentejo e Ribatejo avançaram para a ocupação das herdades abandonadas pelos agrários, em fuga para o Brasil ou para a Suíça.



Todos nós, que tivemos o privilégio de viver esta época exaltante, aprendemos na escola da vida duma revolução que não vinha escrita nos livros – o que, só por si, prova o seu carácter genuíno e transformador. Que a revolução desperte o horror dos apóstolos do neoconservadorismo português, os mesmos que aplaudem G. W. Bush, é bom sinal. Mais ainda quando ela não é evocada apenas como passado mas como futuro, pois não está escrito em nenhum livro sagrado que as revoluções do século XXI se detenham nos marcos estreitos do capitalismo e da guerra infinita - o verdadeiro paradigma do seu triste “fim da História”. Trinta anos depois, a Revolução ainda é uma criança. E, como diz a canção, "não é minha nem é tua, é de quem a apanhar…".

in Crónica semanal na Rádio Pax – Beja - 20/04/2004

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