segunda-feira, março 29, 2004

O GOLPE DE 1964

Frei Betto

No dia 31 de março faz 40 anos que um grupo de militares - apoiados pela CIA, segundo admitiu Lincoln Gordon, então embaixador dos EUA no Brasil -, rasgou a Constituição, derrubou o presidente João Goulart e impôs à Nação uma ditadura que durou 21 anos e fez mais de 500 mortos e desaparecidos. Em "Incidente em Antares", uma paródia do Brasil sob botas, Érico Veríssimo frisa que não existe aquilo sobre o que ninguém fala ou escreve. Por isso, importa não relegar o golpe ao olvido. Se as novas gerações souberem o que significou, com certeza não serão tentadas a repeti-lo. Caso contrário, não haveria farsa, mas dupla tragédia.

Desde a renúncia de Jânio Quadros, que prometeu varrer o país e acabou varrido em agosto de 1961, o golpe começou a ser armado. O triunvirato que o sucedeu, antes de repassar o governo ao vice-presidente eleito, serviu de balão de ensaio. O Brasil clamava por reformas de estrutura: agrária, urbana, educacional etc. Aos olhos da Casa Branca e de nossa elite, que mal engoliram as reformas trabalhistas da era Vargas, transformar estruturas era favorecer a penetração comunista no Brasil. Os EUA não suportariam outra Cuba no continente. O clamor nacional foi esmagado pelas esteiras dos tanques.

O regime militar levou-me aos cárceres duas vezes; uma por poucos dias, em junho de 1964; e outra por quatro anos (1969-1973). Nunca me exilei. Libertado, durante cinco anos hibernei-me numa favela em Vitória, para prosseguir na resistência à ditadura, fortalecendo a organização popular, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que serviram de sementeira para inúmeros movimentos sociais, como o MST.

O período ditatorial nos deixou lições que não devem ser esquecidas. Produziu o "milagre brasileiro", mas o general Médici reconheceu que "a economia vai bem, mas o povo vai mal". Crescimento económico não é sinónimo de desenvolvimento social. Aquele pode ocorrer às custas deste. Ainda hoje constitui um sério desafio assegurar uma nação mais justa, menos desigual, na qual os índices de IDH tenham mais importância que os do PIB. É esta equação que exige dos países emergentes uma mudança de rota na administração de suas finanças.

A ditadura acabou porque o movimento social minou as suas bases, sobretudo com as greves do ABC, mostrando a sua verdadeira cara ao lavar a maquilhagem com que os economistas do regime retocavam os indicadores económicos. Reconquistou-se a democracia política no intuito de conquistar no futuro a económica, arrancando milhões de famílias da senzala da miséria. Como a transição foi conduzida por acordo tácito entre os que usufruíram vantagens políticas e económicas durante o regime militar - e ainda ocupa o proscénio nacional - e suas vítimas, que articularam as novas forças políticas, não houve traumas nem rupturas, excepto para as famílias que tiveram seus filhos sacrificados e ainda não sabem, como, quando nem onde foram assassinados.

Hoje, vítimas da ditadura ocupam o Poder Executivo. Passaram por suas prisões o presidente Lula e José Dirceu, Dilma Rousseff e Nilmário Miranda, e tantos outros. Pesa em nossos ombros a responsabilidade de promover a democracia económica, reduzindo as desigualdades sociais através do leque de reformas sinalizadas por este governo: além da previdenciária, a agrária, a trabalhista e a política. Ao assentar 115 mil famílias de sem-terra este ano, estender o Fome Zero e o Bolsa Família a mais de 3 milhões de famílias, combater o desemprego e a violência nas grandes cidades, o governo estará começando a fechar o arco que se quebrou no dia 31 de março de 1964.

Tirado da Adital

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