quinta-feira, dezembro 04, 2003

Ser ou não ser

O mar salgado argumenta bem: considera que a lei do aborto não tem sentido a partir do momento em que há milhares de mulheres que infringem essa lei, pondo em perigo as suas vidas devido às más condições em que realizam os abortos ilegais (agradeço ao Cruzes a chamada de atenção). O Barnabé indigna-se justamente perante a criminalização recente de 7 mulheres.

Mas se é evidente que a criminalização do aborto é uma idiotice sem limites, o único argumento que resta aos “pró-vida” é a questão de ser ou não ser vida, aos quantos meses, aos quantos dias... O Mar salgado e o Caso arrumado, assumem esta posição, defendendo que já há vida, ou alma, ou o que lhe quisermos chamar, a partir da concepção:
1) a vida intra-uterina não é um nada; é, nas palavras do saudoso Orlando de Carvalho, uma spes vitae, que, justamente enquanto esperança ou potência de vida, merece consideração comunitária e, por isso, protecção jurídica , diz o Mar Salgado; Tenho para mim que o feto, desde um momento que ainda ninguém conseguiu definir qual pelo que há de presumir-se que desde a concepção, é uma Vida, diz o Caso arrumado.

Contribuindo para reflexão de todos, queria discutir não a vida ou não vida do embrião (o argumento mais propalado aquando das discussões públicas sobre o aborto), mas o reflexo deste argumento na sociedade. É que se é verdade, e se todos aqueles que defendem este argumento o fizeram em consciência, então há uma enorme contradição entre o que se disse e a realidade empiricamente percepcionada.

É que existem milhares de abortos naturais todos os anos; socialmente, será que um embrião de 1, 2, 3 ou mesmo 4 meses é considerado como uma pessoa? Se sim, onde estão nos cemitérios esses milhares de corpos diminutos que todos os anos morrem de morte natural? Onde estão os filhos minúsculos dos milhares de partidários do não ao aborto que morreram prematuramente?
Na realidade, os abortos naturais são completamente ocultados, pelo menos quando são embriões de poucos meses; mesmo no seio da Igreja, estas mortes prematuras não são consideradas dignas de ritos fúnebres. Pelo contrário: os preconceitos levam a que estes abortos não sejam assumidos publicamente, e os pequenos embriões que serviram hipocritamente de argumento para desviar as atenções dos verdadeiros problemas do aborto ilegal acabam abandonados num canto qualquer.

Por isso, cá fica a questão: como é que consideram que o embrião é vida e depois não o tratam condignamente? Há aqui uma ligeira contradição, só justificável pela necessidade de argumentar e de ter razão. Mas como se pode ver, os actos estão muito longe das palavras; a razão, essa, perdeu-se nos meandros dos argumentos invocados para justificar o injustificável. E por debaixo de convicções muito católicas estão escondidas uma mão cheia de mentiras e comportamentos hipócritas, a bem da moral e do decoro das mulheres, sem respeito nenhum pelas suas vidas...

PS - Talvez esteja enganado, mas nunca tive conhecimento de um funeral de um embrião de 2 ou 3 meses...
PS2 - A Bloguítica e o comprometido espectador também andam nestas lides...

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