terça-feira, outubro 28, 2003

Consenso de Buenos Aires

Brasil e Argentina firmam Consenso de Buenos Aires

Na 5ª feira, dia 16 de outubro de 2003, em histórica cerimónia ocorrida no Salão Nobre da Casa Rosada, em Buenos Aires, os presidentes Luis Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Nestor Kirchner, da Argentina, firmaram o "Consenso de Buenos Aires", um documento que, em 20 pontos, oferece um contraponto ao famigerado "Consenso de Washington" - ideário liberal formulado sob a coordenação do economista John Williamson que, a partir dos anos 80, atiçou a onda liberal que varreu o continente, espalhando miséria, plantando as raízes da crise generalizada que vem espocando por todos os recantos, um fenômeno que, em dezembro de 2001, levou o caos à Argentina (ver matéria "Neoliberalismo leva Argentina ao caos", na edição de 21 de dezembro de 2001) e que, agora, tem na Bolívia seu mais destacado exemplo.

Com a assinatura do Consenso de Buenos Aires, os presidentes Lula e Kirchner mandaram um claro recado para os EUA, que insistem em tratar a região como uma espécie de "quintal". O documento indica às grandes potências que o bem-estar da população está acima dos compromissos financeiros internacionais e, entre outros pontos, propõe que a ALCA seja "eqüitativa e equilibrada", deixa claro que a dívida externa não deve ser paga com o sacrifício da população e, para desespero dos norte-americanos, propõe que o Mercosul negocie com Cuba um acordo de livre comércio no formato "4+1".

O estreitamento das relações do Brasil com a Argentina pode representar o surgimento do pólo que faltava ao hemisfério sul para empurrar a humanidade na rota do mundo multipolar, necessário ao equilíbrio que deixou de existir com a débacle da URSS.

Este é o texto do "Consenso de Buenos Aires", assinado pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, na 5ª feira, dia 16 de outubro de 2003.

O Consenso de Buenos Aires

1. Nós, os Presidentes da República Argentina, Néstor Kirchner, e da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, convencidos de que o bem-estar dos povos constitui o objetivo prioritário de ambos os governos, reafirmamos o nosso desejo de intensificar a cooperação bilateral e regional com vistas a garantir a todos os cidadãos o pleno usufruto de seus direitos e liberdades fundamentais, incluindo o direito ao desenvolvimento, em um âmbito de liberdade e justiça social em concordância com os valores, propósitos e objetivos estabelecidos na Cúpula do Milénio.

2. Destacamos a transcendência que a consolidação da democracia política possui para a nossa região, bem como o nosso propósito comum de fortalecê-la, assumindo a responsabilidade histórica que nos concerne em relação ao combate à pobreza e à desigualdade, ao desemprego, à fome, ao analfabetismo e à doença, que configuram uma perda efetiva de autonomia e dignidade das pessoas, obstaculizando gravemente o exercício pleno da cidadania.

3. Concordamos em impulsar decididamente, no processo de integração regional, a participação ativa da sociedade civil, fortalecendo os organismos existentes, bem como as iniciativas que possam contribuir para a complementação, a associação e o diálogo amplo e plural.

4. Manifestamos a nossa convicção de que, em um contexto mundial caracterizado pela aceleração de um processo de globalização que tem ampliado o horizonte das possibilidades humanas, mas que, paralelamente, tem gerado inéditas modalidades de concentração econômica, nossas nações devem definir seu futuro no âmbito de uma agenda que responda às necessidades, possibilidades e desafios que singularizam nossos países no início de século 21.

5. Comprometemo-nos a instrumentar políticas públicas que alicercem o crescimento sustentável e a distribuição eqüitativa de seus benefícios, propiciando ordenamentos tributários e fiscais mais justos.

6. Temos a certeza de que o flagelo da pobreza não se resolve com planos assistenciais. Mesmo quando estes possam constituir um paliativo necessário até o efetivo equacionamento do problema, não devem tender a cristalizar uma sociedade dividida entre aqueles que têm emprego e aqueles que recebem assistência. Nesse sentido, propomos impulsionar todas as ações necessárias com vistas a reduzir as elevadas taxas de desemprego que castigam nossas sociedades, gerando condições propícias para o desenvolvimento dos negócios e do investimento produtivo.

7. Temos ciência do papel estratégico que nossos Estados devem desempenhar e redobraremos os esforços tendentes a fortalecer as suas instituições, profissionalizar a administração pública, melhorar sua capacidade de resposta, incrementar sua eficácia e assegurar maior transparência nos processos de tomada de decisões.

8. Reconhecemos que a nossa aspiração comum de desenvolvimento implica dar absoluta prioridade à educação como ferramenta de inclusão social, sendo que a sua capacidade integradora e equalizadora não tem sido superada por nenhuma outra política social. Nesse sentido, através da política educativa, nossos Governos buscarão garantir a todos os cidadãos a aquisição de capacidades de aprendizado que lhes permitam desenvolver-se ao longo de suas vidas, em uma sociedade em permanente transformação que requer atualização constante de habilidades e capacitação.

9. Reafirmamos o nosso compromisso para construir uma sociedade da informação norteada pelos objetivos de inclusão social, erradicação da fome e da pobreza, melhoria da saúde e da educação, bem como alcançar um desenvolvimento econômico e social equilibrado.

10. Sabemos que a revolução informática traz novas oportunidades de participação e de acesso ao conhecimento, mas apresenta inéditos perigos de exclusão, gerando uma brecha tecnológica entre as nossas nações e os países altamente industrializados. Nesse contexto, nossos povos devem incorporar-se ao mundo digital. Para tanto, propomos desenvolver a infra-estrutura necessária, de forma tal que todos os cidadãos e empresas, especialmente as pequenas, estejam em condições de participar ativamente das vantagens que oferece a sociedade da informação.

11. Redobraremos os esforços para que nossas universidades e institutos de ciência e tecnologia multipliquem e potencializem seus vínculos, com o intuito de gerar um pólo científico e tecnológico regional que aprofunde as investigações básica e aplicada, com critérios de sustentabilidade e equidade social.

12. Consideramos que muitos dos problemas que hoje enfrentamos baseiam-se nos fortes desequilíbrios e desigualdades regionais existentes no âmbito de nossas nações. Propomo-nos, portanto, a instrumentalizar políticas de desenvolvimento regional que levem em consideração e respeitem a diversidade do território.

13. Reafirmamos a nossa convicção de que o trabalho decente, da maneira como é concebido pela OIT, constitui o instrumento mais efetivo de promoção das condições de vida de nossos povos e de sua participação nos frutos do progresso material e humano. Saudamos a próxima Conferência Regional do Emprego do Mercosul, em março de 2004, e desejamos que de seus resultados surjam linhas de ação que permitam a nossas comunidades níveis satisfatórios de coesão social e dignidade do trabalhador e de sua família.

14. Reiteramos nossa adesão aos princípios consagrados na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, bem como aos programas de ação estabelecidos pela Agenda 21 adotada pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e no Plano de Implementação adotado pela Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável.
Expressamos nossa firme intenção de cooperar e coordenar ações com vistas à promoção dos objetivos consagrados pelos acordos multilaterais ambientais, tais como a Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática e seu Protocolo de Quioto e a Convenção sobre Diversidade Biológica, entre outros.
Continuaremos envidando esforços na busca de soluções sustentáveis para a gestão integrada dos recursos hídricos compartilhados, com a intenção de propiciar o desenvolvimento sustentável de nossas populações.

15. Ratificamos nossa profunda convicção de que o Mercosul não é somente um bloco comercial, mas, ao contrário, constitui um espaço catalisador de valores, tradições e futuro compartilhado. Dessa forma, nossos governos estão trabalhando para fortalecê-lo através do aperfeiçoamento de suas instituições nos aspectos comerciais e políticos e da incorporação de novos países.

16. Entendemos que a integração regional constitui uma opção estratégica para fortalecer a inserção de nossos países no mundo, aumentando a sua capacidade de negociação. Uma maior autonomia de decisão nos permitirá enfrentar de maneira mais eficaz os movimentos desestabilizadores do capital financeiro especulativo, bem como os interesses contrapostos dos blocos mais desenvolvidos, amplificando nossa voz nos diversos foros e organismos multilaterais. Nesse sentido, destacamos que a integração sul-americana deve ser promovida no interesse de todos, tendo por objetivo a conformação de um modelo de desenvolvimento no qual se associem o crescimento, a justiça social e a dignidade dos cidadãos.

17. Reafirmamos o nosso desejo de continuar com as negociações da Rodada de Doha em bases equilibradas e com perspectivas reais de êxito, em particular no que tange ao capítulo agrícola, superando a falta de resultados concretos em Cancún. Reafirmamos nosso firme compromisso com os objetivos da Agenda de Doha e instamos os países desenvolvidos a cooperarem de maneira efetiva para a sua realização, de maneira a consolidar um sistema multilateral de comércio aberto, sem distorções e não-discriminatório. Declaramos, do mesmo modo, nossa intenção de estabelecer novas alianças e estratégias conjuntas com outros países com os quais compartilhamos interesses e preocupações semelhantes.

18. Reiteramos o nosso compromisso com uma continuada e estreita coordenação de posições na busca de acordos equilibrados, que possam incrementar as ligações do Mercosul com outros sócios, em particular a Comunidade Andina, com o objetivo de obter maior prosperidade para todos.
Coincidimos na disposição de continuar participando à partir do Mercosul nas negociações da (ALCA) Área de Livre Comércio das Américas, com o intuito de alcançar um acordo equilibrado que respeite os interesses díspares dos participantes e que dê ao processo a flexibilidade necessária para permitir que a negociação se desenvolva conforme a situação de cada um dos países e blocos envolvidos. Nesse sentido, coincidimos em reafirmar a proposta de formato metodológico apresentada pelo Mercosul, por considerarmos que a mesma constitui uma alternativa realista que permitirá alcançar um acordo satisfatório em janeiro de 2005.

19. Expressamos que a administração da dívida pública deve ter como horizonte a criação de riqueza e de emprego, a proteção da poupança, a redução da pobreza, o fomento da educação e da saúde, bem como a possibilidade de manter políticas sustentáveis de desenvolvimento econômico e social.

20. Enfatizamos o nosso compromisso histórico com o fortalecimento de uma ordem multilateral baseada na igualdade soberana de todos os Estados e rechaçamos todo exercício de poder unilateral incompatível com os princípios e propósitos consagrados pela Organização das Nações Unidas.

21. Entendemos que o multilateralismo e o respeito às normas e princípios do Direito Internacional devem permanecer no primeiro plano em todos os esforços relacionados com a segurança internacional e, particularmente, em relação aos objetivos de desarmamento e não-proliferação.
Reafirmamos o papel central das Nações Unidas e do Conselho de Segurança nas relações internacionais como principal instrumento universal para a manutenção da paz e da segurança internacionais, bem como a promoção do desenvolvimento econômico e social de forma sustentável. Sublinhamos a necessidade de estrita observância da Carta da ONU e dos princípios e normas universalmente reconhecidos do direito internacional por parte de todos os membros da comunidade internacional.
Reafirmamos a necessidade de combater as ameaças à paz e à segurança internacionais e o terrorismo, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os instrumentos jurídicos nos quais o Brasil e a Argentina são parte.

22. Afirmamos a nossa vontade de trabalhar conjuntamente para a concretização deste Consenso e fazemos extensivo a todos os países latino-americanos o convite para alcançarmos, desta forma, uma sociedade mais justa, eqüitativa e solidária, que fortaleça a democracia na região.

Salão Nobre da Casa Rosada, em Buenos Aires, 16 de outubro de 2003
Os presidentes: Luis Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Nestor Kirchner, da Argentina

NOTA - Colocado na lista FSPortugal por Eduardo Marques.

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