quarta-feira, outubro 15, 2003

As propinas e o resto
Alberto Matos, Beja - 14/10/2003

As greves e manifestações estudantis contra o aumento das propinas têm, para já, um mérito: chamar a atenção do país para um sector vital ao seu desenvolvimento. Todos ouvimos repetir, vezes sem conta, que a principal riqueza de um país é a sua massa cinzenta, isto é, a qualificação profissional, a formação inicial e contínua que a população trabalhadora vai obtendo ao longo da sua vida activa - e mesmo para além dela. O que está em causa na polémica sobre as propinas é uma opção sobre o modelo de desenvolvimento: intensificar a exploração de uma mão-de-obra barata e pouco qualificada, tornando Portugal uma espécie de sueste asiático da Europa - o que não tem grande futuro no mundo de hoje; ou apostar decisivamente na qualificação das pessoas, na massa cinzenta, o que tem custos e implica dar prioridade ao ensino no investimento público.

O actual governo tem batido na tecla da competitividade para justificar este aumento brutal das propinas no ensino superior dos anteriores 356,60 euros para um mínimo de os 463, 58 euros e um máximo de 852 euros - aumentos que oscilam entre 30% e os 139%! A consequência óbvia deste aumento é tornar o ensino superior ainda mais elitista, regredindo aos tempos em que entrar numa universidade era um luxo quase exclusivo dos ricos; e se, dos alunos matriculados, hoje apenas 50% concluem os seus cursos, no futuro muitos mais irão ficar pelo caminho. Ou seja: a política deste governo põe Portugal a competir directamente com o terceiro mundo e não nos integra no 'processo de Bolonha' de criação de um espaço universitário europeu. Em sete países da UE, entre eles a Áustria, a Finlândia ou a Alemanha, não se pagam propinas, enquanto Portugal gasta menos de metade da média dos países da OCDE com o ensino superior - atrás de nós, só a Grécia e a Turquia.

O argumento da justiça social é o mais perverso, mas também o mais revelador: considerando o ensino superior um privilégio, este deveria ser pago pelos privilegiados que a ele acedem e que, por essa via, terão amanhã 'uma rica vida'. Em que país estamos? No das muitas dezenas de milhares de licenciados no desemprego, a caminho das caixas dos supermercados e da proletarização - sem que isso envolva qualquer juízo de valor negativo - ou, como Alice, no país das maravilhas? E que privilégio é esse de entrar no ensino superior quando, recentemente, foram aprovados doze anos de escolaridade obrigatória? É como andar no ciclo preparatório, quando a escolaridade obrigatória terminava na quarta classe. Quem hoje considerar o ensino superior um luxo, devia era ter vergonha de falar em progresso e competitividade.

Quanto a justiça social, estamos conversados. Sabe-se quem paga impostos neste país: basicamente, os trabalhadores por conta de outrem, os mais castigados pelo aumento brutal das propinas. Se os poderosos deste país, a começar pela banca, pagassem impostos a sério, os filhos da burguesia e das profissões liberais até poderiam estudar de graça nas universidades e ainda sobraria muito dinheiro para investigação e desenvolvimento. Como tal não acontece, mais uma vez os trabalhadores são duplamente penalizados pois os seus filhos, nalguns casos, terão de abandonar os estudos. Quanto aos subsídios e bolsas da acção social escolar, basta dizer que uma mãe que viva sozinha com um filho e ganhe o 'ordenadão' de 140 contos - 700 euros - já não tem direito a nada.

Hoje está claro que o aumento das propinas, na década de 90, foi o início de um caminho perverso que conduz à demissão do estado das suas responsabilidades. Em vez de servir para melhorar a qualidade, como era prometido, a receita das propinas foi abatida ao orçamento do ensino superior. A diminuição do número de alunos e o fecho de dezenas de cursos reforçam a necessidade da aposta a sério num ensino público de qualidade. Ao mesmo tempo, diminui o mercado das privadas, sobretudo os cursos de lápis e papel que prosperaram à custa dos alunos que não conseguiam entrar no ensino superior público. Isto também ajuda a perceber a opção deste governo, a que alguém já chamou a coligação Lusíada/Moderna: aumentar as propinas no ensino superior público para ajudar os seus amigalhaços das privadas em crise. E ainda dizem que este não é um governo solidário. Haja negócio! Se pudessem, privatizavam até o Sol - o ar, a água e os lixos já estão na calha.

Não se esqueçam, porém, que as lutas estudantis sempre marcaram a situação política, desde antes do 25 de Abril até à queda do cavaquismo. Por enquanto, ainda não caiu nenhum Salazar da cadeira. Mas já caíram dois ministros.

Alberto Matos - Crónica semanal na Rádio Pax

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